Rogério Pipi, o modelo fotogénico de Chelas que somou nove troféus e 204 golos pelo Benfica
Rogério Pipi representou o Benfica entre 1942 e 1954
Chamava-se Rogério Lantres de
Carvalho, mas nas lides futebolísticas ficou conhecido por Rogério Pipi. Porquê
Pipi? Pelo seu jeito elegante de vestir, pelo gosto de andar sempre aprimorado.
A alcunha foi-lhe dada pelo antigo capitão benfiquista Francisco Albino, após o
avançado ter aparecido na revista Flama como se de uma estrela de
Hollywood se tratasse, depois de ter sido convidado por um alfaiate famoso para
posar num estúdio.
Natural do bairro lisboeta de
Chelas, começou a jogar futebol num clube que o pai ajudou a fundar, o Chelas
Futebol Clube, seguindo os passos do irmão, Armínio França, o principal craque
do clube da zona oriental da capital. Inicialmente era apenas o “irmão
do França”, um rapaz franzino que além de dar uns toques na bola trabalhava durante
o dia no Grémio das Carnes, no Rossio, ao lado de… Peyroteo.
“Era um dos meus ídolos. Colecionava o cromo dele dos rebuçados e, de repente,
estava ali a trabalhar a seu lado. Admirava-o em grande escala”, contou um dia. Numa ocasião, o goleador do Sporting
convidou Rogério para um jogo de solteiros contra casados na Tapadinha:
“Perguntou-me que tal eu era no futebol e disse-lhe que dava uns toques. De
seguida, perguntou-me qual era o meu lugar, ao que lhe respondi ‘qualquer um no
ataque’. Ele começou a rir-se, como quem diz ‘estás com peneiras’.”
A verdade é que Rogério deixou Peyroteo
impressionado: “Joguei a interior e pedi ao Matoso, um amigo meu que atuou a
extremo, que me passasse a bola. Na primeira jogada, fintei toda a gente, e
golo. O Peyroteo
começou a olhar para mim. E assim por diante. Marquei pra aí uns dez golos. Num
deles, fintei o guarda-redes, voltei para trás e pumba, marquei de fora da
área. O Peyroteo
estava espantadíssimo. ‘Você é um grande jogador, joga que se farta, vai mas é
para o Sporting’.” O avançado
leonino não estava a brincar. Tentou mesmo tornar o colega de trabalho no
Grémio das Carnes num companheiro de equipa num dos principais emblemas
nacionais. No dia a seguir ao jogo entre solteiros e casados, o presidente sportinguista
Oliveira Martins apareceu no local de trabalho de ambos: “O Peyroteo
apresentou-me como se eu fosse um craque, quase melhor que ele, veja lá. O meu
ídolo a falar de mim daquela maneira. Lá fui treinar a uma terça-feira: voltas
ao campo e uns pontapés à baliza, ali no Campo Grande. Correu tudo bem, mas, no
elétrico de volta para casa, disse ao Peyroteo
que já não queria ir ao treino de quinta-feira, que ele não se preocupasse
comigo, e ele pôs-me logo à vontade: ‘Ó Rogério, esteja à vontade, resolva a
sua vida.’ Nesse treino de terça-feira, como era costume, havia adeptos a ver e
um deles disse ao meu irmão que eu estivera a jogar pelo Sporting.” Mal chegou a casa, Rogério foi
confrontado pelo irmão, que o levou de imediato para a sede do Benfica
em Chelas. “Cheguei a casa às 18 horas, como o meu irmão, e ele pergunta-me se
treinei no Sporting.
Disse que sim. Jantámos e fomos à sede do Chelas, para falar com o João Rosa,
presidente do Chelas. Quando ele tomou conhecimento do sucedido, telefonou logo
ao capitão Ribeiro da Costa, presidente do Benfica,
e chamou-nos num táxi para irmos à sede do Benfica.
Quando chegámos lá, assinei pelo Benfica.
E pronto”, recordou o antigo avançado, que ganhou 10 contos e viu o Chelas arrecadar
16 com a transferência.
Na época de estreia, 1942-43, foi
pouco utilizado na I
Divisão, mas festejou a conquista do campeonato e ainda marcou no triunfo
sobre o Vitória
de Setúbal (5-1) na final da Taça
de Portugal, naquela que foi a primeira dobradinha da história dos encarnados.
“Apesar disso, foi um ano difícil porque cheguei receoso por esta rodeado de
craques como os meus ídolos Albino, Gaspar Pinto e Francisco Ferreira, que era
daqueles jogadores que espumavam da boca e assustavam o adversário pela sua
pujança. Atenção, havia mais. Como o Júlio, que era pequenino e mesmo assim
conseguia ganhar de cabeça a jogadores altos, estilo Feliciano, das Torres de
Belém; como o Manuel da Costa, que marcava golos atrás de golos; e como o
Teixeira, dos Açores, a quem chamávamos ‘marreco’ por jogar com o pescoço
metido entre os ombros”, recordou. Rogério Pipi conseguiu conquistar
nove troféus pelo Benfica
em 12 anos de águia
ao peito, entre 1942 e 1954, três campeonatos (1942-43, 1944-45 e 1949-50) e
seis Taças
de Portugal (1942-43, 1943-44, 1948-49, 1950-51, 1951-52 e 1952-53) – e
conquistou ainda a não oficial Taça Latina (1950) –, mas era o Sporting
que dominava a cena nacional na altura. “Nós éramos os diabos vermelhos, que,
por acaso, até era uma expressão proibida pelo Salazar, e eles, do Sporting,
eram os ‘Cinco Violinos’, e esse nome esmagava qualquer outro que lhe
aparecesse à frente. (…) A diferença entre nós e eles era o Peyroteo.
Não havia jogo em que ele não marcasse golos”, reconheceu.
Goleador em bola corrida, mas especialista
também em livres diretos e penáltis, nunca se conseguiu sagrar melhor marcador
da I
Divisão, mas estabeleceu um recorde que provavelmente jamais será
ultrapassado, o de jogador com mais golos em finais da Taça
de Portugal. Foram 15, sempre pelo Benfica:
um ao Vitória
de Setúbal (1943), cinco ao Estoril
(1944), um ao Atlético
(1949), quatro à Académica
(1951), três ao Sporting
(1952) e um ao FC
Porto (1953). Apenas uma pequena parte dos 204 remates certeiros que
amealhou em 306 jogos oficiais de águia
ao peito. Pelo meio, chegou a representar o
Botafogo
em 1947, mas a aventura no Rio de Janeiro durou menos de um ano, tendo pedido
ao presidente do emblema
carioca para deixar o clube tendo em conta que Rogério e a mulher queriam
que o filho nascesse em Portugal. No regresso, o Benfica
recebeu-o de braços abertos. Aquando da conquista da Taça Latina, uma das
precursoras da Taça
dos Campeões Europeus, foi mesmo o atacante de Chelas que,
surpreendentemente, ergueu o troféu: “Com o entusiasmo e a invasão do público,
todos perdemos a cabeça. Empurraram-me e, quando dei por mim, estava na tribuna
de honra à frente do ministro. Foi o momento mais feliz da minha carreira.”
Em 1954 deixou os encarnados por
recusar o profissionalismo imposto por Otto
Glória, quando tinha 31 anos: “Chegou o Otto
Glória, um brasileiro que vinha revolucionar e profissionalizar o futebol
português. Os dirigentes do Benfica
chamaram-me e disseram-me que agora ou se era profissional ou não. Ou se
treinava e jogava ou não. Já não havia amadorismo. E eu, sempre apegado à minha
família e ao meu emprego, recusei o profissionalismo. Saí do Benfica.” Uma decisão compreensível, pois
ser profissional do Benfica
render-lhe-ia 3000 escudos por mês contra os 15 mil escudos que auferia no
emprego no stand da Ford em Alvalade. Porém, continuou a jogar futebol
por mais quatro anos no clube da terra, o Oriental,
que havia nascido em 1946 por fusão do Chelas com o Fósforos: “Os dois
primeiros anos na II Divisão, os outros dois já na I
Divisão.” Em 1958 encerrou uma carreira na
qual também couberam 15 internacionalizações (e dois golos) pela seleção
nacional A. Morreu a 8 de dezembro de 2019,
no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, apenas um dia depois de completar 97
anos.
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