quarta-feira, 26 de maio de 2021

Lourenço: “Podia ter ido mais além, mas não me arrependo da carreira que fiz”

Lourenço jogou 34 vezes pela equipa principal do Sporting
Fez toda a formação no Sporting, onde viu de perto o crescimento de Cristiano Ronaldo, com o qual se chegou a cruzar no plantel principal. Também jogou pela última equipa campeã pelos leões e foi duas vezes vencedor e melhor marcador do Torneio de Toulon, mas acabou por ficar com o rótulo de promessa adiada.
 
Em entrevista, o antigo avançado luso-angolano que representou as seleções jovens portuguesas e os Palancas Negras passa em revista uma carreira em que lidou com técnicos como Laszlo Bölöni, Fernando Santos, Carlos Carvalhal e Jorge Jesus e massas adeptas exigentes como as de Vitória de Setúbal e Farense e fala ainda da curta experiência como treinador e sobre a temática do racismo.
 
ROMILSON TEIXEIRA - Comecemos pelo fim. O Lourenço teve esta temporada uma primeira experiência à frente de uma equipa sénior em Portugal, o Fátima SAD, que acabou por desistir do Campeonato de Portugal ao fim de cinco jogos. Que balanço faz desta aventura?
LOURENÇO - Para mim foi uma surpresa, pois não estava à espera de um convite para treinar uma equipa do Campeonato de Portugal tão cedo.
 
O Fátima SAD desistiu do Campeonato de Portugal em novembro. Tem tido convites desde então?
Até agora não recebi nenhum convite, mas estou sempre esperançado que um apareça. Um novo desafio baterá à minha porta outra vez.
 
O que, no entender do Lourenço, devia mudar no futebol português para não voltarem a acontecer mais casos como o que abalou o Fátima?
Nós treinadores e jogadores apenas queremos mostrar o nosso trabalho. Para tudo o resto temos instâncias reguladoras competentes para poder acabar com esses fenómenos.
 

“Com posse de bola estamos mais perto de marcar e não sofrer”

Lourenço orientou o Fátima no início desta época
Que nível de treinador tem e o que gosta de ver no modelo de jogo das suas equipas?
Tenho o grau II. O rigor tático e técnico, a capacidade de leitura dentro do jogo e a posse, pois com ela estamos mais perto de marcar e não sofrer.
 
É raro ver um treinador negro no futebol ao mais alto nível. Sente que existe um racismo silencioso para com os treinadores negros?
Não creio e não penso nisso. É tudo uma questão de oportunidade e do acreditar dos dirigentes, basta ver o que está fazer o mister Pepa. Desde que lhe foi dada oportunidade tem demonstrado trabalho de qualidade por onde passa e começa a ser olhado de outra maneira e quiçá́ já́ para outros voos.
 
Para o Lourenço é mais ofensivo o racismo silencioso que não dá oportunidades ou os insultos que lamentavelmente muitas vezes se ouvem nos estádios?
Racismo é racismo, silencioso ou no estádio. Mas claro que vindo da bancada é pior, é sinal de frustração de quem o pratica de viva voz. O importante é combater esse fenómeno, pois branco, preto, azul ou amarelo, afinal somos todos de carne e osso, ou seja, somos todos iguais.
 
Antes do Fátima orientou camadas jovens no Tenente Valdez, no CAC da Pontinha e nos sauditas do Al-Wehda. Como correram essas experiências?
Correu bem, foi uma aprendizagem única e enriquecedora para a minha formação enquanto jovem treinador.
 

“Vim descalço de Portugal para Angola

Voltemos atrás no tempo. Nasceu em Luanda em 1983, mas veio para Portugal ainda bastante jovem. Com que idade emigrou e porquê?
Vim descalço… emigrei com oito anos, em 1991. Os meus pais queriam o melhor para mim e acharam que vindo para Portugal, para perto dos meus tios e avós, seria o melhor para o meu crescimento como pessoa e a nível estudantil.
 
Como é que a bola entrou para a sua vida e como surgiu a possibilidade de começar a jogar na formação do Sporting em 1991-92?
Fui aos treinos de captação através do meu tio Orlando, que já jogava nos iniciados do Sporting.
 
Quais as principais recordações que tem do tempo em que jogava na formação do Sporting?
As melhores. Desde as amizades com colegas - algumas ainda duram - aos títulos de campeão, tudo fica marcado nas nossas vidas.
 
 

“Sempre pensei que Ronaldo ia chegar a um nível bastante elevado”

Lourenço com Cristiano Ronaldo no Sporting
No Sporting foi companheiro de equipa de craques que atingiram um nível bastante elevado na carreira, como Beto (guarda-redes), José Fonte, Carlos Martins, Hugo Viana e Ricardo Quaresma. Ficou surpreendido pelo trajeto de algum? E, por outro lado, a que companheiros de equipa visualizava melhores carreiras do que as que acabaram por ter?
Cada um fez a carreira que tinha que ser feita. Uns melhores, outros mais ou menos, próprio da vida. Quem sempre pensei que ia chegar lá foi o Cristiano Ronaldo, pela ambição, foco e trabalho que já realizava em querer ser sempre melhor. Nunca pensávamos é que poderia fazer tal trajeto, mas ele acreditou sempre e hoje é o melhor de todos os tempos.
 
Em 2001-02 estreou-se pela equipa principal do Sporting e fez dois jogos na Taça de Portugal, acabando por ficar associado à conquista do troféu. Qual foi o impacto de treinar e jogador numa equipa onde pontificavam jogadores como André Cruz, João Vieira Pinto e Mário Jardel?
Para mim foi das melhores coisas que aconteceu, pois trabalhei sempre com o foco e o pensamento de chegar à equipa principal e consegui, fruto do bom trabalho que realizei na equipa B. Joguei e treinei com os melhores e últimos campeões nacionais do Sporting.
 
Como era Laszlo Bölöni? O que tinha de especial o último treinador a leva o Sporting ao título?
Era excelente treinador, bom comunicador, mas muito exigente na hora do trabalho, principalmente no treino físico, ao qual dava muita importância.
 
Paralelamente, antes de se ficar na equipa principal do Sporting, esteve emprestado ao Bristol City e ao Oldham Athletic, ambos do terceiro escalão inglês. O que o levou a experimentar a sorte em Inglaterra e como se adaptou a um futebol, uma língua e uma cultura diferentes numa fase em que ainda era bastante jovem?
Penso que foi importante para o meu crescimento. Era outro futebol, com exigência máxima até ao último minuto. Aprendi e cresci muito com aquele futebol.
 
 

“Fernando Santos não fazia distinção até na altura de dar duras”

Como foi trabalhar com Fernando Santos? Como eram os métodos de trabalho e a relação com os jogadores? O próprio já assumiu que de manhã não tem um feitio fácil…
Tinha bons métodos de trabalho e boa relação com os jogadores. Não distinguia os mais velhos dos mais novos, eram todos iguais. Até na altura de dar duras não olhava a caras.
 
Nessa temporada o Sporting cruzou-se com um menino chamado Cristiano Ronaldo durante a pré-época. Como era ele na altura? Esperava que atingisse um nível tão elevado?
Era um talento que tinha desapontado na época anterior. O Ronaldo é hoje o que é porque trabalhou para isso e continua a trabalhar para ser melhor todos os dias. Na altura já se notava que era diferente dos outros, mas não sabíamos se iria atingir tal sucesso. Ainda bem que conseguiu, pois merece.
 
No Sporting treinou e jogou ao lado de Mário Jardel e Liedson. Sendo avançado, o que retirou de cada um deles?
Aprendizagem dos dois grandes avançados.
 

“Rúben Amorim já pensava o jogo como ninguém no Belenenses

Lourenço com Rúben Amorim no Belenenses
Em 2004-05, foi orientado no Belenenses por Carlos Carvalhal, então em início de carreira, e foi companheiro de equipa de Rúben Amorim. Que recordações tem destes dois?
Do mister Carvalhal guardo boas recordações porque cheguei a ser muitas vezes titular e deu-me liberdade como jogador. Rúben Amorim era na altura um jogador com muita qualidade e já pensava o jogo como ninguém. Os trajetos deles como treinadores só me satisfazem pelo que estão a fazer, pois um dia também quero fazer igual e se for possível mais. Para isso ainda tenho que trabalhar e andar muito para lá chegar.
 
 
Já em 2005-06 foi cedido à União de Leiria, onde foi orientado por Jorge Jesus. Que balanço faz da sua passagem pela cidade do Lis e o que achou dos métodos e da forma de estar de JJ? O que aprendeu com o atual técnico do Benfica?
Jorge Jesus é um treinador com métodos próprios. Fez-me crescer ainda mais como jogador, dizia sempre que não era um 9 mais sim um 9 e meio e deu-me liberdade para dar criatividade em prol da equipa. Tínhamos uma grande equipa e a vivência na cidade foi simples e de adaptação fácil.
 
 

“O Vitória de Setúbal é um clube exigente, com adeptos fanáticos”

Lourenço nos sadinos em 2006
No verão de 2006 terminou contrato com o Sporting e assinou pelo Vitória de Setúbal, um clube que vivia um momento difícil, com salários em atraso. Como correu a aventura de cerca de meio ano no Bonfim e com que impressão ficou do clube e da exigente massa adepta sadina?
A equipa tinha problemas todos os dias, é verdade, mas foi mais uma passagem com aprendizagem para minha carreira. O Vitória é um clube exigente, com adeptos fanáticos. Em relação a ordenados estiveram sempre em dia pois eu recebia do Sporting.
 



“Subi à II Liga com o Farense. Cidade e adeptos são fantásticos”

Lourenço no Farense em 2012-13
Depois de passagens pelo futebol grego, pelo Moreirense e pelos espanhóis do Alzira, ajudou o Farense a subir à II Liga em 2013. Como correu a experiência em Faro e com que opinião ficou do clube e dos seus adeptos?
Em Espanha foi horrível. No Moreirense correu mais ou menos, prefiro nem recordar, não pela administração e clube em si, pois fui bem-recebido, mais sim por outros contextos que não vale a pena recordar. Do Farense tenho boas recordações, com a subida à II Liga, a cidade e os adeptos são fantásticos.
 
 
Após um ano nos romenos do Brasov, teve as últimas aventuras da carreira no Campeonato de Portugal com as camisolas do Pinhalnovense e Atlético. Como correu cada uma destas experiências?
A Roménia foi a minha última paragem a nível profissional. Fui bem-recebido na cidade de Brasov e a adaptação foi fácil, tirando o frio no inverno, pois fazia -13º C e neve, mas gostei do clube. Pinhalnovense e Atlético apareceram numa altura que estava a fazer a minha formação como treinador, logo foram experiências enriquecedoras a todos os níveis.
 

Duas vezes vencedor e melhor marcador do Torneio de Toulon

Lourenço ao serviço de Portugal
Paralelamente, o Lourenço teve um percurso nas seleções jovens portuguesas, tendo vencido o Torneio Toulon em 2001 e 2003 e participado nos Campeonatos da Europa de sub-16 em 1998 e de sub-21 em 2004 e 2006, assim como nos Jogos Olímpicos 2004. Quais são as principais recordações dos jogos e dos torneios que fez de quinas ao peito?
Todas as recordações foram positivas, cada uma com o seu propósito, mais a melhor foi sem dúvidas os Torneio de Toulon, onde ganhei e fui melhor marcador duas vezes.
 
O Lourenço acabou por jogar uma vez pela seleção angolana, em 2011, numa fase em que até já vinha perder fulgor. Tendo em conta que jogou várias épocas nos campeonatos de Portugal e Grécia, o que falhou para não ter representado mais vezes os Palancas Negras?
Em 2011 acabei por representar Angola uma vez. O que falhou foram as lesões que tive, e não ter estabilidade a nível de equipas, uma vez que fiquei alguns anos sem competir, logo não poderia ser chamado a seleção.
 
 

“Podia ter ido mais além, mas não me arrependo da carreira que fiz”

Lourenço festejou cinco golos com a camisola do Sporting
Olhando para trás, para as expetativas e para a sua carreira, sente que o Lourenço foi uma promessa adiada? O que poderia ter corrido melhor?
Penso que o Lourenço fez a carreira que tinha que ter feito. Se podia ir mais além? Podia. Se não fui, foi porque não tinha que ser, mas não me arrependo da carreira que fiz. Há quem não tenha feito nem um terço da minha carreira, por isso sinto-me orgulhoso pelo que fiz, mesmo que muitos pensei que foi pouco. Acho que foi bom para mim, foi ótimo e é o que interessa.
 
Propomos-lhe um desafio. Elabore um onze ideal de jogadores com os quais jogou.
Nélson; Miguel Garcia, Beto, André Cruz e Rui Jorge; Rochemback, João Vieira Pinto e Álvaro Recoba; Cristiano Ronaldo, Pedro Barbosa e Mário Jardel.
 
E que treinadores mais o marcaram e porquê?
Bölöni pela estreia na equipa principal, Fernando Santos pela confiança e afirmação na equipa principal, Jorge Jesus pela evolução a nível técnico e tático.
 
Do que mais sente saudades do tempo em que era jogador?
Do convivo do balneário e dos estágios antes dos jogos, momentos em que estávamos todos em família.
 
Continua a acompanhar o futebol angolano? Como analisa o nível e qualidade do Girabola e da seleção angolana?
Sim, a qualidade cresce ano após ano. Esperemos que a seleção de Angola volte a dar alegrias aos angolanos, com presenças no CAN e Mundiais, porque há muito que estão afastados.
 
Entrevista realizada por Romilson Teixeira










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