terça-feira, 21 de setembro de 2021

João Ricardo. De único jogador sem clube no Mundial 2006 às componentes para carpintaria

João Ricardo jogou 29 vezes pela seleção angolana
Em 736 jogadores que estiveram no Mundial 2006, 735 tinham clube. O outro era o João Ricardo. Ainda assim foi o titular da baliza da seleção de Angola nos três jogos da competição. Antigo guarda-redes de Académico Viseu, Salgueiros, Moreirense e Petro de Luanda, fez história pelos Palancas Negras e sofreu os primeiros golos da carreira de Cristiano Ronaldo, mas está agora ligado ao ramo da carpintaria e com as portas do futebol encerradas.
 
Em entrevista, o antigo guardião passa em revista a carreira e fala da situação atual do futebol angolano, mostrando-se bastante crítico para com o dirigismo atual, crendo que o nível do Girabola tem vindo a decrescer de época para época.
 
ROMILSON TEIXEIRA - Comecemos pela maior façanha da sua carreira. Em 736 jogadores que estiveram no Mundial 2006, 735 tinham clube. O outro era o João Ricardo. Ainda assim foi titular nos três jogos que a seleção de Angola disputou. O que aconteceu para ter estado uma época tão importante sem clube?
JOÃO RICARDO - Na história dos Mundiais sempre houve casos semelhantes ao meu. Não foi um caso virgem. Logicamente que tinha de haver uma situação concertada com o selecionador, senão não era possível acontecer o que aconteceu. O professor Oliveira Gonçalves tinha um conhecimento profundo do meu caráter, do meu sentido de responsabilidade e talvez o mais importante: aquilo que eu podia dar à equipa. Esta concertação aconteceu também porque os convites que tinha tido para continuar a jogar ficaram muito aquém daquilo que era a minha exigência. Daí dedicar-me exclusivamente à seleção.
 
Durante aquele ano, como é que manteve a forma?
Mantive a forma com treinos bidiários de segunda a sexta-feira. Durante as manhãs treinava no ginásio com um personal trainer e à tarde treinava no Portomosense, clube ao qual muito agradeço, principal ao treinador Nuno Presume. Aos sábados e domingos folgava. Com a possibilidade de participar num Mundial tudo se tornava mais fácil.
 

“Outros guarda-redes? Não sei como seria a minha reação no lugar deles”

Como concorrentes tinha Lamá (Petro) e Mário Hipólito (Interclube). Como era a relação com os outros guarda-redes, tendo também em conta que o João Ricardo não tinha competição, mas assumia a titularidade da seleção?
Acredito que não tenha sido fácil para eles, mas imperou a lei do mais velho. Não sei como seria a minha reação no lugar deles, mas fica o registo de que sempre tivemos uma excelente relação. Para a estabilidade de um guarda-redes é sempre importante o bom companheirismo e um relacionamento de salutar.
 
 O que sentiu quando ouviu o hino de Angola antes do jogo de estreia do Mundial?
Ouvir o hino num palco daqueles é algo extraordinário, de uma emoção muito forte… arrepiante. Foi sem dúvidas um dos momentos mais bonitos que vivi no desporto.
 
Apesar de esse ser o único Mundial de Angola, os Palancas Negras foram competitivos em todos os jogos, perdendo apenas para Portugal pela margem mínima e empatando perante as mais experientes seleções de México e Irão. Saíram da Alemanha de consciência tranquila e com o amargo de boca de terem estado perto de seguir para os oitavos de final?
É normal ficar esse sentimento, sinal de que fizemos as coisas quase na perfeição, e penso que demos uma excelente imagem de Angola e em especial do futebolista angolano. O amargo só tem a ver com a ambição, logicamente que ambicionávamos mais, mas penso que só temos que estar orgulhosos e vaidosos pelo que fizemos e, mais importante, o que proporcionámos a todos os angolanos. Isso sim fica registado para todo o sempre.
 
 

“Onde existe dirigentes sem classe não pode haver pretensão de sucesso”

O que tinha de especial essa geração angolana para fazer o que nunca mais nenhuma outra conseguiu?
Penso que há vários fatores, mas vou realçar um, que era o caráter. Ninguém nos intimidava dentro do campo e fora dele exigíamos respeito e organização. Penso que desta forma conseguimos o sucesso desta geração.
 
O que tem faltado às gerações seguintes para levar Angola novamente a um Mundial?
O que tem faltado, no essencial, é organização e planeamento. Onde existe uma classe de dirigentes sem classe não pode haver qualquer pretensão de sucesso.
 

Empresário no ramo da carpintaria

O que tem feito desde que pendurou as luvas há uma década?
Depois de ser obrigado a pendurar as luvas, depois de perceber que os projetos que tinha para desenvolver em Angola não iriam acontecer e perceber ainda que tinha as portas do desporto encerradas para mim, obviamente que tinha de mudar o chip. Uma coisa era certa: daqui não saio. Hoje, apesar de não fazer o que mais gosto, tenho uma empresa ligada às componentes para a carpintaria desde 2009.
 
Voltando atrás. Nasceu em Luanda, mas cresceu em Portugal, mais precisamente na zona de Leiria. Como foi a sua infância?
A minha infância foi perfeitamente normal. Fui para Portugal com quatro ou cinco anos com os meus pais, que por causa da guerra saíram de Angola. E como todos os rapazes daquela época, além de escola havia muita brincadeira na rua e, claro, muita bola também.
 
Como é que a bola entrou para a sua vida e quando e porquê decidiu tornar-se guarda-redes?
A bola sempre esteve presente na minha vida, primeiro a de basquetebol (talvez por influência da minha mãe, que jogou no Atlético de Luanda) e mais tarde, aos 16 anos, comecei a caminhada no futebol. Aí a influencia já deve ter sido do meu pai, que jogou no Futebol Clube de Cabinda). Quando era pequeno, os mais velhos mandavam-me sempre para a baliza, e como eu queria jogar, ficava com o que sobrava. Assim se fez um guarda-redes.
 
Que memórias guarda dos anos em que jogou na formação e na equipa principal do Leiria e Marrazes?
Os tempos do Leiria e Marrazes foram tempos espetaculares, tive a sorte de ter bons treinadores, que nos tratavam como filhos. Eram tempos de muita pureza e nenhuma maldade. Ainda hoje esses momentos são revividos com treinadores e alguns jogadores da época.
 

Da tempestade à bonança em Viseu

João Ricardo estreou-se pela seleção angolana em 1996
Entre 1993 e 1998 representou o Académico Viseu e é nessa altura que se estreia na seleção angolana. Quais as principais recordações dos cinco anos que passou na cidade de Viriato?
Bem, em terras do Viriato tive um começo muito difícil. Foi aí que abracei o profissionalismo depois de o adiar durante quatro ou cinco anos. A seguir a esse começo difícil, em que não joguei e descemos à II Divisão B, veio a bonança. Assumi a titularidade, subimos à II Liga e mais tarde surgiram também as primeiras chamadas à seleção e ainda algumas perspetivas de poder subir de patamar. Foram tempos fabuloso, dos melhores grupos que tive no futebol. Ainda hoje parte do grupo se encontra para conviver e reviver.
 
Em 1998 deu o salto para o Salgueiros, clube em que foi pouco utilizado, mas que ainda assim lhe deu a possibilidade de jogar pela primeira vez na I Liga. Que balanço faz dos três anos que passou no emblema de Vidal Pinheiro?
No Salgueiros foi fantástico, três anos maravilhosos apesar de não competir quase nada. Viver no Porto, uma das cidades mais bonitas do Mundo, e conviver com colegas internacionais e que só via na televisão, no dia-a-dia, parecia uma ilusão. Na verdade, foi uma fase de poucos jogos, mas de muita aprendizagem.
 

“Com a história e mística que tem, Salgueiros devia ficar eternamente na I Liga

Como viu a queda do Salgueiros nos anos que se seguiram à sua passagem por Paranhos? Já era algo que o João Ricardo, que esteve por dentro, perspetivava? E tem acompanhado o ressuscitar do clube?
Foi com tristeza que acompanhei a queda do Salgueiros. O clube, com a história e a mística que tem, deveria ficar eternamente na I Liga. Nunca pensei que o clube caísse desta forma. O clube está a querer ressurgir, ainda tem uma mística brutal, mas falta a Arena de Paranhos, onde era extremamente difícil de derrotar o Salgueiros.
 
No Salgueiros teve concorrência pesada: Jorge Silva e Silvino. Foquemo-nos neste último. O que mais aprendeu com Silvino? Imaginava que estivesse ali alguém que, num futuro próximo, se ia tornar num dos melhores treinadores de guarda-redes do mundo?
Eu previa a ascensão dele, não pensei foi que conseguisse tanto num curto espaço de tempo, o que é fantástico e fico feliz por ter sido colega e amigo dele.
 
No Salgueiros também partilhou o balneário com Deco. Já era um craque naquela altura? Acreditava que ele fosse atingir o nível que acabou alcançar?
O Deco sempre foi craque, já o tinha defrontado quando ele jogava no Alverca e depois enquanto colega e tendo a possibilidade de o ver a treinar todos os dias, era fácil de prever que o Salgueiros era demasiado pequeno para ele.
 
No Salgueiros também foi companheiro de equipa do malogrado Miki Fehér. Quais as principais memórias que tem do avançado húngaro?
As lembranças do Fehér são as melhores, ele era um amigo de casa e convivíamos bastante. Era alguém com uma qualidade humana fabulosa, um amigo, disponível, trabalhador incansável e de uma grande humildade.
 

“Fiquei na história do Moreirense

João Ricardo jogou no Moreirense entre 2001 e 2005
Após três anos de escassa utilização no Salgueiros, transfere-se para o Moreirense, sagra-se campeão da II Liga, passa a jogar com regularidade no primeiro escalão e regressa à seleção angolana para se impor como titular. Imaginamos que tenham sido os melhores anos da sua carreira…
É capaz de ser verdade, as três épocas que tive no Salgueiros foram de aprendizagem, como disse anteriormente, e ao ir para o Moreirense seria com o intuito de relançar a minha carreira e, com 31 anos, já não tinha muito mais tempo. E a ida para o Moreirense acabou por ser uma excelente aposta, sagrámo-nos campeões da II Liga e acabei por ficar na história do clube também. Foi uma época a todos os níveis extraordinária quer pessoalmente como coletivamente.
 
Depois do Mundial 2006 vai jogar pela primeira vez para Angola, com a camisola do Petro Luanda. Qual foi a sensação de jogar no Girabola e logo ao serviço de um dos principais emblemas do país?
Após Mundial fui confrontado com vários convites e não foi preciso pensar muito para decidir qual aceitar. Como o meu desejo era regressar a Angola, juntou-se o útil ao agradável. Apesar de já saber as condições que ia encontrar, não foi uma época fácil, principalmente quando pensas que vens para ajudar a melhorar algo e tens tantas barreiras a impedir para que haja melhorias. Nem por isso deixou de ser prazeroso, deu para conhecer a grandeza do Petro de Luanda.
 

“Nível do Girabola tem vindo a decrescer de época para época”

Que opinião tem sobre o nível competitivo e organizacional do Girabola? Quais são para si as grandes diferenças entre o futebol angolano e o europeu?
O nível competitivo tem vindo a decrescer de época para época e a nível organizativo pior ainda. Isso reflete-se nas seleções e nas equipas que representam Angola nas afrotaças, com participações medíocres. As diferenças são gritantes entre futebol angolano e europeu, mas saliento a organização a seriedade e o respeito.
 
Foi comentador desportivo na TPA. Como surgiu esta oportunidade e o que achou deste desafio?
O momento de comentador não passou disso mesmo, um momento, que resultou da passagem do Mundial ou de um CAN, foi um convite pela experiência vivida e de poder contá-lo na primeira pessoa. Foi uma experiência gira e interessante.
 
Pretende voltar a estar ligado ao futebol?
A minha fase de desportista já lá vai e hoje não me revejo nem como treinador nem como dirigente. E, como disse anteriormente, as portas estão todas fechadas, e como até trabalho com portas também, nada irei fazer para as abrir ou arrombar.
 
Propomos-lhe um desafio. Elabore um onze ideal de jogadores com os quais jogou.
1 – Jorge Silva (Salgueiros)
2 – Sérgio (Académico Viseu)
3 – Paulinho (Salgueiros)
4 – Sérgio Lomba (Moreirense)
5 – Luís Vouzela (Académico Viseu e Moreirense)
6 – Flávio Meireles (Moreirense)
7 – Alex (Moreirense)
8 – Semedo (Salgueiros)
9 – Deco (Salgueiros)
10 – Fehér (Salgueiros)
11 – Demétrius (Moreirense)
 
Foi orientado por treinadores como Dito, Vítor Manuel, Manuel Machado, Vítor Oliveira e Jorge Jesus. Que treinadores mais o marcaram e porquê? Tem histórias com cada um deles que possa partilhar?
Ainda faltam aqui uns quantos nomes e outros que já nem me lembro. Mas prefiro de falar de treinadores que não mencionou e que para mim foram bastante importantes no meu crescimento e formação como atleta e como homem: Fernando Neto, Rochita, Fernando Tomé, Paiva, Paulo Rabaça, Mário Ruas e João Cavaleiro.
 
João Ricardo representou o Petro Luanda em 2007 e 2008
Nas últimas convocatórias, o selecionador angolano Pedro Gonçalves chamou os guarda-redes António (Petro), Hugo Marques (Farense), Neblú (1º de Agosto) e Kadú (Sp. Espinho). Qual é o guardião que mais aprecia e qual o mais parecido com o João Ricardo?
Tenho dificuldade em falar de convocatórias e de guarda-redes, pois não acompanho o futebol nacional e pouco vejo o internacional, mas tenho simpatia pelo Hugo Marques, pela sua humildade, simpatia, dedicação e pelo trabalho que tem feito ao longo dos anos. Acompanhei o Neblú no inicia da sua caminhada, era uma promessa e se é convocado é porque tem evoluído e merece a confiança do selecionador. O Kadú passou pelo FC Porto, umas das melhores escolas de guarda-redes. Quer-me parecer que temos qualidade e garantias nas nossas balizas.
Todos eles estão a cima de 1,90 m e eu só tinha 1,80 m, não se pode comparar.
 
Que opinião tem sobre o atual estado da seleção angolana de futebol?
O estado da seleção angolana está longe de ser fácil e tranquilo. Infelizmente cabe ao grupo de treinadores e de jogadores a cada momento superarem-se perante as adversidades, que elas são muitas e constantes.
 
A nível mundial, quem são os guarda-redes que mais aprecia?
Depois da saída de cena de Vitor Baia e Casillas, e Buffon estando na iminência de terminar a carreira, sobra muito pouco: Manuel Neuer, Rui Patrício, Kasper Schmeichel e Oblak. Estas são as minhas referências
 
Começou a carreira no Leiria e Marrazes, um popular clube de uma localidade de onde Rui Patrício é natural. Já o conhecia antes de ele chegar à equipa principal do Sporting?
Apesar de termos feito a formação no mesmo clube, nunca nos cruzámos. Existe uma diferença de idade de 18 anos entre nós. Pode ser que aconteça daqui a uns anos.
 
Entrevista realizada por Romilson Teixeira




 








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