sexta-feira, 10 de setembro de 2021

André Macanga. O Mundial, a passagem pelo FC Porto e a mudança de Mantorras

André Macanga jogou 70 vezes pela seleção de Angola
Um dos heróis que qualificou Angola para o Mundial 2006 e que dignificou os Palancas Negras no torneio que se realizou na Alemanha, André Macanga recorda a vitória no Ruanda, revela os segredos da geração de ouro angolana e a sensação de capitanear a seleção.

Em entrevista, o antigo médio passa em revista uma carreira que teve início no modesto Arrifanense e que teve passagens por clubes como FC Porto, Salgueiros, Alverca, Vitória de Guimarães, Académica e Boavista, conta porque não assinou pelo Benfica apesar do interesse encarnado e confessa desilusão pela mudança de comportamento do seu protegido Mantorras quando este se mudou para a Luz.
 
ROMILSON TEIXEIRA - O André Macanga destacou-se ao serviço dos Palancas Negras, tendo sido uma das principais figuras da equipa que apurou Angola ao Mundial 2006. O que sentou depois do apito final do jogo realizado em Kigali?
ANDRÉ MACANGA – Esse foi o momento mais marcante da seleção angolana. Ninguém acreditava na nossa qualificação, mas, com um grande profissionalismo da parte dos jogadores e uma direção que tudo fez para que não nos faltasse nada, fizemos um jogo tranquilo, apesar de a Nigéria nos estar a pressionar. Querendo ou não, houve um incentivo para que o Ruanda nos travasse. Mas nós estávamos confiantes, sem pressão, não sentimos medo e depois do apito final houve alegria, choros… de tudo um pouco. O que mais nos marcou foi a chegada a Angola, onde fomos recebidos pelo Presidente da República, primeira-dama e todo aquele povo que se juntou para nos apoiar. Esse foi o momento mais marcante da nossa carreira a nível de seleção.
 
Como é para si, ter sido parte daquela que é chamada de geração de ouro do futebol angolano? O que acha que esteve na base do sucesso daquela seleção?
É um grande prazer fazer parte dessa geração de ouro. É sabido que passaram muitos, mas muitos atletas na nossa seleção, por isso sermos os primeiros a conseguir a qualificação para o Mundial é um grande orgulho. Hoje somos reconhecidos pelos feitos da nossa seleção, mas sobretudo para levar a seleção ao Campeonato do Mundo de 2006 na Alemanha. Isso já ninguém nos tira. Esperamos que a nova geração consiga o mesmo, mas para isso é necessário trabalhar bastante, haver muita humildade e um trabalho árduo da parte de todos. Não será fácil, mas quem trabalha bem por vezes consegue.
 
Como era a sua relação com o selecionador Oliveira Gonçalves e com os seus colegas de seleção?
André Macanga desarma Figo no Mundial 2006
A minha relação com o prof. Oliveira Gonçalves era uma relação de pai e filho. Sabia que ele gostava muito de mim, não por eu jogar fora ou coisa parecida, mas porque eu dava tudo em campo. Um jogador que deixa tudo em campo… é ele e mais dez. Sempre que eu vinha representar o país eu esquecia tudo, esquecia a família, esquecia o clube… queria-me dedicar a 100% à seleção. Quando terminavam os jogos, aí sim, pegava no meu carro e ia para casa da minha mãe. Também tínhamos uma coisa que era muito bom, que era ficarmos juntos depois dos treinos e dos jogos. Sentíamos que tínhamos de estar mais tempo juntos, porque jogávamos fora, vivíamos fora e passávamos pouco tempo juntos. Se tivéssemos de ir para casa de alguém, íamos todos. Se tivéssemos de ir para a discoteca, íamos todos. Se havia uma festa de alguém, íamos todos. Além de ter uma boa relação com o prof. Oliveira Gonçalves, eu também era um dos líderes da nossa seleção. Tudo o que aprendi em Portugal fui passando aos meus companheiros mais jovens. Eu era daqueles jogadores que era muito rígido e muito amigo dos meus colegas. Não queria que jogadores menos utilizados fizessem cara feita, não queria que se criassem ilhas. O prof. Oliveira Gonçalves reconheceu a minha qualidade como homem e como jogador e ainda hoje temos uma boa relação.
 
Representou Angola por vários anos, e chegou a envergar a braçadeira de capitão. Como foi capitanear a seleção do seu país?
Capitanear a seleção é prazeroso. Comecei como vice capitão, o capitão era o Akwá e também havia o Figueiredo. Em 2008, no CAN do Gana, eu peguei a braçadeira e nunca mais a larguei até à minha retirada. Ser capitão não é para qualquer um. Muitos querem ter a braçadeira só para o estilo, mas ser capitão é para alguém com perfil, que os outros atletas respeitem, admirem e vejam como um líder. Sinto-me muito reconhecido. Estou muito feliz por tudo aquilo que fiz pelo futebol angolano.
 

“Presidente do Arrifanense sentiu pena de mim e arranjou-me alojamento”

André Macanga nos tempos do Arrifanense
Com que idade foi para Portugal e que memórias tem da sua infância?
Fui para Portugal em 1992, numa altura em que Angola se encontrava em Guerra Civil. Na altura, os meus pais trabalhavam. A minha mãe era enfermeira parteira e o meu pai era chefe nas finanças, tinham algumas possibilidades, e eu pedi-lhes para ir para Portugal, até porque a maioria dos meus irmãos já estavam em Portugal. Eu tinha 15 anos, um corpo atlético avantajado e insisti bastante para que a minha mãe tratasse do passaporte e comprasse o bilhete.
Cheguei em janeiro, havia muito frio e depois tive o aconselhamento de muitos vizinhos e dos meus irmãos. O clima era totalmente diferente. Pensei em regressar, mas as pessoas aconselharam-me a ficar. Eu estava em São João da Madeira e encontrei um clube em que me haveria de iniciar, o Arrifanense. Tinha 17 anos, fiz um teste e eles gostaram. O presidente e os treinadores quiseram apostar em mim. Comecei nos juvenis, mas depois passei para os juniores e fui intercalando com os seniores. Fui campeão com os seniores na III Divisão Nacional e apareceram clubes que me quiseram. Estou feliz, porque sou o que sou e houve um começo. E esse começo chama-se Arrifanense.
 
Começou a jogar futebol em Portugal nas camadas jovens do Arrifanense, um clube do concelho de Santa Maria da Feira. Que memórias tem desses tempos?
Os meus irmãos tinham casa no Porto e eu vivia com eles. Então tinha de apanhar autocarro até Santa Maria da Feira, treinava e depois do treino, com muito frio, tinha de apanhar boleia dos jogadores dos seniores. O próprio presidente sentiu pena e arranjou-me alojamento. Foi a melhor opção que eles tomaram para que eu estivesse concentrado e mais próximo do clube.
 
Em 1998-99 representou o Vilanovense e de lá saltou para a I Liga
Antes de assinar pelo Vilanovense, estive à experiência na União de Leiria, mas na altura o presidente João Bartolomeu dava um valor muito baixo e saí da União de Leiria, que estava na I Liga, para o Vilanovense, da II Divisão B. O meu objetivo era poder fazer um bom campeonato e depois dar o salto. E deu certo. Os meus empresários, Rui Neno e Nélson Almeida, disseram-me para ficar calmo, que ia chegar à I Liga ao fim de meia época.
Depois o falecido Dito, que estava a treinar o Salgueiros, viu-me a jogar em dois jogos e disse que me queria. Assim que abriram as inscrições em janeiro, lá fui para o Salgueiros. Assinei por três anos, mas acabei só ficar um, porque Pinto da Costa gostou do meu futebol e no final da época assinei pelo FC Porto.
Fiz a pré-época no FC Porto, mas não fiquei no plantel porque era extracomunitário. Pedi ao meu empresário para não ficar no FC Porto a fazer número, pedi para ser emprestado. Depois apareceu o Alverca, que solicitou os meus préstimos. Penso que foi uma escolha acertada. Encontrei um grande professor, Jesualdo Ferreira, e alguns angolanos, como o Bernardo [Cariata]. Na altura ainda não conhecia o Pedro Mantorras, ainda era júnior. Tínhamos uma equipa excelente, com grandes jogadores. Adaptei-me muito bem e fiz uma grande época.
A partir daí fui saindo de um clube para o outro, sempre por empréstimo do FC Porto. Depois do Alverca fui para o Vitória de Guimarães, depois para a Académica e para o Boavista. E depois fui para a Turquia, para o Kuwait e finalmente para o Qatar. Andei bastante, mas sempre a jogar ao mais alto nível.
 

“Para jogares no Salgueiros tens de ter alma, tens de ter atitude”

André Macanga representou o Salgueiros em 1999-00
Que memórias tem do tempo que passou no Salgueiros e o que a mística salgueirista tem de tão especial?
Para jogares no Salgueiros tens de ter alma, tens de ter atitude. Penso que não é só no Salgueiros, mas nos clubes todos do Norte, que te ensinam a teres garra, a teres atitude, por mais que as coisas não corram na perfeição. Tens que batalhar. Fiz grandes amigos no Salgueiros, como o Neves, o Pedro [Reis] que era um grande senhor e capitão, o Basílio que era um grande ponta de lança, o Rui Ferreira, o Cândido Costa que hoje é comentador e o Carlos Ferreira que jogava comigo no meio-campo. Tínhamos um bom grupo. Quando o grupo se dá bem fora do campo, dentro de campo não há como os resultados não serem positivos. O Salgueiros era um clube que, quando acabavam os treinos, tínhamos um grupo de cinco ou seis jogadores que almoçávamos juntos e ficávamos algum tempo juntos. Éramos como irmãos. Portanto, tenho boas recordações do Salgueiral.
Mas não foi fácil, porque quando fui para o Salgueiros o treinador era o Dito, fizemos a pré-época, começámos o campeonato, na minha posição jogava o Toninho Cruz e ele não estava a dar-me hipóteses, era um grande jogador. Fui aguentando, trabalhando sempre nos limites, e à 5.ª jornada fomos jogar frente ao Vitória de Setúbal, o Toninho foi expulso por acumulação de amarelos e na 6.ª jornada recebemos o Farense e o treinador deu-me a oportunidade, disse para eu jogar como fazia nos treinos, disse que assumia a responsabilidade se alguma coisa corresse mal. Só sei que entrei em campo sem pressão, fiz um grande jogo, todos começaram a perguntar de onde é que eu vinha e acabei o campeonato a jogar, o Toninho nunca mais jogou. Essas são as grandes recordações que tenho de Paranhos e do Salgueiros. Grande clube! É uma pena que esteja nas divisões secundárias, mas acredito que regresse à I Liga.
 
Como viu a queda e o renascimento do Salgueiros?
Vi as várias descidas de divisão do Salgueiros com tristeza, porque na altura o clube estava bem, embora o presidente José António Linhares tinha alguns problemas de saúde, ficou doente e acabou por falecer. Depois perdi um bocadinho o rasto do Salgueiros, porque já estava no Médio Oriente.
 

“Vieira quis levar-me para o Benfica, mas eu tinha contrato com o FC Porto

André cumprimenta Pena no Estádio das Antas
O que correu mal para não se ter estreado oficialmente pelo FC Porto?
Não posso dizer que as coisas no FC Porto tenham corrido mal. O grande problema era que eu tinha vindo de um clube da II Divisão B, o Vilanovense, e que depois fui contratado para o Salgueiros e ao fim de uma época fui contratado pelo FC Porto. Estava a ser tudo muito rápido. Penso que as coisas têm de acontecer com naturalidade, tudo a seu tempo. O FC Porto tinha um plantel muito estável, ainda encontrei Paulinho Santos, Aloísio, Vítor Baía, o falecido Esquerdinha, Deco, Domingos Paciência e Capucho. Havia um leque de grandíssimos jogadores. Eu até poderia jogar, caso o treinador, na altura o Fernando Santos, me desse oportunidade de mostrar o meu real valor. Se fui contratado, foi porque viram qualidades em mim. Mas quando vi que não ia ter espaço, pedi para ser emprestado. Não queria ser mais um a fazer número. Sabia que num outro clube eu ia dar continuidade que tinha feito no Salgueiros. Não correu mal, tive uma boa experiência e fiz uma pré-época excelente. O mister Fernando Santos decidiu que eu não ia fazer parte do plantel. Respeito essa decisão, mas tenho que dizer que não joguei no FC Porto, mas mostrei ao FC Porto o grande valor que eu tinha, porque joguei em todos os clubes pelos quais passei com dedicação, atitude e garra. Não foi por acaso que o Luís Filipe Vieira me quis levar para o Benfica. Só não fui porque tinha contrato com o FC Porto. Foi uma pena, porque no Alverca o presidente Luís Filipe Vieira estava sempre próximo da equipa. Além de gostar do Mantorras, também gostava bastante de mim. Se eu não tivesse contrato com o FC Porto, tenho a certeza absoluta que ia jogar no Benfica.
 

“Apoiava muito o Mantorras, mas quando ele foi para o Benfica mudou completamente”

André Macanga no Alverca em 2000-01
Seguiu-se um empréstimo ao Alverca, onde teve Ricardo Carvalho e Mantorras como companheiros de equipa, Jesualdo Ferreira como treinador e Luís Filipe Vieira como presidente. Quais as principais recordações que tem dessa época e destas quatro personagens do futebol português?
As grandes recordações que tenho foi trabalho com um presidente que é um homem de balneário, que gosta de estar com a equipa e brincar com os jogadores. O Ricardo Carvalho foi um dos melhores amigos que tive no Alverca e ainda hoje temos uma boa relação. Com o Pedro Mantorras… nem tanto. Na altura o Mantorras jogava nos juniores e eu apoiei-o bastante, dava-lhe boleia para casa e para os treinos e ele chamou-me quando o AC Milan foi falar com ele. Mas depois de ir para o Benfica, Mantorras mudou completamente. Penso que o homem nunca pode mudar o seu comportamento, a sua atitude, temos de continuar a ser humildes. Não é o dinheiro que pode fazer com que a gente mude de comportamento. Mas continuo a admirá-lo, foi meu colega e gosto muito dele.
 

“Guimarães é uma cidade impressionante, com adeptos que morrem pelo Vitória

André Macanga com Augusto Inácio no Vitória de Guimarães
Em 2001-02 defendeu as cores do Vitória de Guimarães. Como correu a aventura no Minho e como foi a convivência com os super exigentes adeptos do clube?
É um grande clube. Eu vinha de uma grande época no Alverca e então os clubes falavam com o FC Porto e solicitavam o empréstimo. Penso que foi assim. Joguei num grande clube, com tradição. Os adeptos do Vitória de Guimarães só são adeptos do Vitória de Guimarães, não são de mais nenhum clube. É uma cidade impressionante, com adeptos que morrem pelo clube. Foi prazeroso representar esse grande clube. No Vitória fiz boas amizade, como Pedro Mendes, Nuno Assis, o falecido Hugo Cunha, o grande central brasileiro Cléber e Guga. A direção era jovem, com o Neno, que tinha sido guarda-redes e estava sempre com os jogadores. O Vitória deixou-me marcas positivas.
Tínhamos um grupo forte, com o Augusto Inácio como treinador. Era um treinador com bagagem, tínhamos uma superequipa e fizemos um bom campeonato. Foi um orgulho poder representar o Vitória de Guimarães.
 

“Época que passei na Académica foi aquela em fiz mais golos na minha carreira”

Em 2002-03 representou a Académica. Que balanço faz da experiência em Coimbra e com que impressão ficou de um clube tão tradicional do futebol português?
Faço um balanço positivo. Na apresentação aos sócios, os adeptos estavam desconfiados, porque falaram nos jogadores angolanos que tinham passado pela Académica, como Akwá, Paulão e Aurélio, que não tiveram o desempenho que os adeptos e os dirigentes esperavam. Mas tenho super recordações. A cidade é fantástica e convivi com gente muito boa. O grupo de trabalho era composto por colegas espetaculares e o treinador era o mister João Alves. Fizemos um bom campeonato e foi a época em que fiz mais golos na minha carreira. Tínhamos uma equipa brutal, com Tonel e Carlos Martins, que jogaram no Sporting; Lucas, que Deus o tenha; um romeno que hoje é empresário, o Marinescu; e o Márcio Santos, que era guarda-redes e que acabou por trabalhar no Recreativo do Libolo. O que aconteceu comigo no Salgueiros também aconteceu na Académica. Como não tínhamos muito para fazer, almoçávamos juntos, treinávamos de tarde e íamos jantar juntos. Estávamos sempre juntos, o que ajudou a fazermos um excelente campeonato.
 
 

“Saltei de alegria quando soube que ia jogar para o Boavista

André Macanga no Boavista em 2003-04
Seguiu-se mais uma passagem por outro clube com grande tradição no futebol português, o Boavista, que poucos anos antes se tinha sagrado campeão nacional. Qual foi o sentimento de jogar com a camisola axadrezada e como correu a temporada?
Quando fui para o Boavista, foi já no final do meu contrato com o FC Porto. No final da época fui para Cabo Verde com a família passar umas merecidas férias. Mas como eu não gostava de estar muito tempo parado e o corpo já estava a pedir treino ao fim de 15 dias, fui chateando o meu empresário no sentido de ele me dizer quando começava a pré-época e onde é que eu ia jogar. Ele dizia-me para ter calma e a poucos dias do início da pré-época disse-me que eu ia para o Boavista. Saltei de alegria!  Penso que o Boavista é daqueles clubes que marca qualquer jogador. Tive o privilégio de apanhar um treinador jovem, que jogou muito futebol e foi campeão no Boavista, o boliviano Erwin Sánchez, que tinha dito ao presidente que contava comigo. No entanto, na altura só podiam jogar dois ou três extracomunitários. Então o clube pediu para eu tratar dos meus documentos, para que eu pudesse ser naturalizado. Na altura o presidente era o João Loureiro, filho de Valentim Loureiro, e tudo aconteceu com normalidade. Em dois meses trataram do meu passaporte e a partir daí comecei a jogar como titular indiscutível no meio-campo ao lado de Filipe Anunciação e Raúl Meireles e por vezes do Frechaut.
Tinha um contrato de quatro anos, mas só fiquei um porque depois apareceram empresários turcos que viram um ou dois jogos meus e mostraram interesse. O clube estava a precisar de algum dinheiro e vendeu-me ao Gaziantepspor.
 

No Kuwait para substituir Vampeta

Na época seguinte representou o Gaziantepspor da Turquia e de lá foi para o Kuwait. Porque aceitou essas mudanças quando era titular num clube ambicioso na I Liga portuguesa?
Na Turquia as coisas correram-me muito bem, mas os jogadores têm de estar preparados para aventuras. Depois de sair de Portugal pensei que podia ir para qualquer lado. Estava a fazer o meu campeonato na Turquia quando o meu empresário me perguntou se eu queria ir para o Kuwait. Eu já estava muito adaptado à Turquia, mas os valores falaram mais alto. Quando saí do Boavista para a Turquia fui ganhar três ou quatro vezes mais e quando saí da Turquia para o Kuwait fui ganhar seis vezes mais. No Kuwait fiquei responsável por substituir um jogador que se portou mal, porque no Médio Oriente ou se vai para jogar ou se vai para fazer outras coisas. O Vampeta foi apanhado a beber, foi preso e o presidente mandou-o embora. O clube [Al-Salmiya] não ganhava há 12 anos e a adaptação foi difícil, mas eu já tinha espírito vencedor e penso que as coisas correram com naturalidade. Mas tinha a minha família por perto, o que facilitou. Fiquei sete anos no Kuwait e ganhei tudo o que havia para ganhar. Houve uma altura em que o próprio dono do Kuwait SC me colocou como capitão e queria que fosse eu a fazer a equipa em vez de ser o treinador a fazê-lo, mas eu não quis, porque tenho valores. Estou muito grato ao Kuwait e não tenho dúvidas de que o meu futuro vai passar pelo Médio Oriente.
 
Terminou a sua carreira de jogador do Al-Shamal, um clube do Qatar, sem ter chegado a jogar no Girabola. Porquê?
Queria terminar a carreira em Angola, mas essa oportunidade não surgiu e fui para o Al-Shamal do Qatar, um clube em que jogaram os famosos irmãos De Boer. Penso que fiz uma boa época, fui capitão. O clube é espetacular e a cidade também. Estive lá um ano e meio. Terminei bem a minha carreira de futebolista, sem me arrastar. Falei com a minha família e disse-lhes que já não tinha motivação para acordar para ir trabalhar. Terminei num bom clube, num bom país, e fiz bons amigos. Isso é que é importante no mundo do futebol.
 
André Macanga quando trabalhava na Federação Angolana
Depois de ter terminado a carreira de futebolista, abraçou a de treinador. Era algo que já tinha em mente?
Quando estava a pensar em terminar a carreira de futebolista, comecei a preparar o meu futuro. O meu futuro passou por fazer formação, inicialmente de dirigismo, em Portugal, e fui fazendo as minhas formações. Depois tive uma conversa com o prof. Oliveira Gonçalves, expliquei-lhe as minhas motivações, e ele disse-me que eu tinha de estar no campo, em contacto com a relva. Aquilo arrepiou-me. Estive quase seis meses no Brasil a fazer formação de treinador, depois fui para Portugal, onde fiz uma formação de gestão desportiva. Entretanto falei com o general Pedro Neto, disse-lhe que queria voltar para Angola, que queria passar a mística da nossa seleção e o general disse-me que já queria falar comigo precisamente para passar a mística aos jovens jogadores. Mal terminei as minhas formações, o general Pedro Neto chamou-me, vim para Angola e acabei por abraçar o projeto da Federação, como adjunto de Romeu Filemon na seleção principal. Foi muito bom passar pela Federação, foi uma experiência boa. Não tivemos a sorte de ganhar mais jogos, mas tenho que dizer que foi um prazer poder representar a nossa seleção, que já tinha representado 12 anos como jogador.
 
Seguiu-se uma curta passagem pelo FC Cabinda. Como correu a aventura pelas terras do Maiombe?
Penso que o FC Cabinda foi um projeto em que as coisas não correram como pretendíamos. Fui para Cabinda, assinei contrato, mas o clube tinha uma série de assuntos por resolver, uma dívida para com um jogador brasileiro que esse mesmo jogador colocou na FIFA, e não estávamos a ver como desbloquear essa situação.
 

“Libolo não pagava há sete ou nove meses e dizíamos aos jogadores para trabalharem nos limites”

André Macanga nos tempos do Recreativo do Libolo
Depois passou três anos ao serviço do Clube Recreativo do Libolo, tendo entrado no clube como treinador adjunto da equipa principal. Que análise faz da sua passagem pelo Libolo?
Sobre a situação do FC Cabinda ninguém disse mais nada, até que eu estava em casa sem fazer nada e apareceu o Bruno Vicente, hoje diretor para a área do futebol do Petro de Luanda, que me convidou para o Recreativo do Libolo fazer os últimos três meses da época. Na altura o treinador estava suspenso e precisavam de alguém para o banco. Como tinha as habilitações todas para estar no banco, fui para lá. Entretanto surgiu a oportunidade de ser treinador principal, uma oportunidade que eu esperava há já algum tempo, e agarrei-a com as duas mãos. Trabalhámos arduamente, fizemos trabalhos enormes. Passámos momentos difíceis, em alturas em que o clube estava há sete ou nove meses sem pagar, e tivemos de passar a mensagem aos jogadores de que tinham de trabalhar sempre nos limites. Mesmo nas dificuldades, fazíamos as coisas com prazer e dedicação. Não há ninguém no Libolo que possa meter em causa todo o trabalho que foi feito. Mas havia uma pessoa que me dava garantias de que podia aguentar e que dizia que eu era um comandante, o general Higino Carneiro, pelo qual tenho grande admiração. É uma pessoa que percebe de futebol, é uma pena que certas pessoas não consigam acompanhar a dinâmica do general Higino Carneiro. Nas dificuldades, ele entrou sempre em contacto comigo, com muito respeito, sempre aceitou o que eu tinha para dizer. Disse-me que a situação estava difícil, mas que podia mudar e que por isso não podíamos baixar os braços.
 
Na época 2019-20, ainda ao serviço do Libolo, tem a sua primeira experiência como treinador de principal uma equipa do Girabola. Que avaliação faz dessa época e o que motivou a sua saída do clube de Calulo?
Faço uma avaliação positiva, tanto como treinador principal como adjunto. Quando substituímos o prof. Kito Ribeiro a equipa estava em 11.º ou 12.º lugar e acabámos em 4.º lugar. Depois, mesmo assim o presidente Casimiro não se sentiu satisfeito e foi buscar um português [Sérgio Boris], que veio e não conseguiu dar conta do recado. Pegámos na equipa, a equipa estava com oito pontos e quatro golos na 14.ª ou 13.ª posição e acabámos na primeira metade da tabela. Depois, quando pegámos definitivamente na equipa, aconteceu essa situação do covid-19, mas terminámos o campeonato em 7.º lugar. Mas tivemos imensas dificuldades, não pensem que o Libolo era o mesmo de quando passaram por lá alguns treinadores. Se eu tivesse as mesmas condições, eu lutava pelo primeiro ou segundo lugar. Mas o futebol em Angola é para equipas que estão bem estruturadas e que em termos de organização estão acima dos demais. E é claro que os jogadores dos clubes que têm o salário em dia estão mais motivados.
 

“O nosso trabalho no Desportivo da Huíla foi sabotado por muita gente”

André Macanga orientou Desportivo da Huíla em 2020-21
Começou a época 2020-21 no comando técnico do Clube Desportivo da Huíla. Que resumo faz da sua campanha no comando dos militares da frente sul do país e o que falhou para que não terminasse a época no clube?
Se eu soubesse o que sei hoje, nem sequer aceitaria ir para o Desportivo da Huíla. O nosso trabalho lá foi sabotado por muita gente. Havia lá um diretor, um tal Domingos Ezequias, que sempre foi uma pessoa que colocou entraves desde a nossa chegada. Não se compreende como um clube como o Desportivo da Huíla tinha uma ou duas pessoas a mandar. É complicado.
E não tivemos tempo suficiente para fazermos uma pré-época digna, visto que o Girabola é um campeonato competitivo e era preciso ter tempo suficiente para fazer um trabalho como deve ser. Fui entrando em contacto insistentemente com o diretor do clube, Domingos Ezequias, no sentido de o fazer perceber que o campeonato começaria entre os dias 27 e 28 de dezembro, mas o mesmo afirmava que este ano não ia haver campeonato, apesar de todas as equipas estarem a trabalhar, e isto fez com que eu chegasse muito tarde à província da Huíla. O Desportivo da Huíla começou os seus trabalhos no dia 28 de novembro de 2020 e eu, enquanto treinador principal, só cheguei à Huíla no dia 12 de dezembro. Tive de cumprir alguns dias de quarentena e comecei a trabalhar com a equipa no dia 17 do mesmo mês, tendo o campeonato começado no dia 28 de dezembro. Penso que depois de estarmos sete meses sem atividades desportivas seria muito difícil fazer um bom arranque. As coisas não corriam bem, mas exigiam resultados imediatos. Penso que as coisas não são assim, eu não trabalho assim, por isso, por livre e espontânea vontade, saí sem contactar ninguém, até porque não sei se as pessoas que iriam ao campo eram mandatários de algumas pessoas, porque eram sempre os mesmos elementos que iam ao terreno de jogo para insultar, e passavam o insulto para os demais. O assunto tornou-se insuportável, até ao momento em que recebemos ameaças de morte, mas penso que haviam jogadores que não estavam nem aí. É complicado quando chegas a uma equipa que estava habituada a trabalhar de uma maneira e chegas com novos métodos de trabalho, rigor, disciplina. Se calhar não estavam habituados a isto, também tivemos o azar de não ter campo para treinar, o campo de ferrovia estava com problemas, tínhamos de procurar sítios para treinar, não treinávamos como gostaríamos, mas de qualquer maneira estamos convictos do nosso potencial, e estamos á espera de novos convites, de clubes em que eu possa trabalhar com os meus adjuntos. Uma coisa é trabalhares com o teu staff, outra é trabalhares com o staff do clube. Muitas vezes, quem atrapalha o trabalho dos treinadores são alguns adjuntos.
 
Que análise faz do nível competitivo e organizacional do Girabola? Quais são para si as grandes qualidades e debilidades dos futebolistas angolanos?
Penso que esta edição do Girabola está muito competitiva, é uma pena as paragens que o campeonato às vezes tem tido, mas penso que a competitividade está patente, não é por acaso que o Sagrada Esperança tem feito o campeonato que está a fazer, pois organizou-se, estruturou-se e estão imbuídos no sucesso do clube. Quando assim é, não poderia ser diferente. O 1º de Agosto é uma equipa que já está a estruturar-se há bastante tempo e os resultados estão aí, tem lançado jovens jogadores que poderão trazer receitas aos clubes, penso que este será o caminho para todos os clubes. Se quisermos ter receitas temos de apostar na juventude. Penso que o nosso futebol está a crescer, tirando alguma desorganização que a FAF tem tido, mas penso que o nosso campeonato tem crescido. Espero que haja mais qualidade, é uma pena não podermos ver os jogos, pois têm sido à porta fechada, o que diminui um pouco o espetáculo que é o nosso futebol.
Já temos alguns clubes que são bem organizados e estruturados, e nota-se que isto faz a diferença, basta olharmos para as equipas que estão à frente, no meio da tabela, e as que estão na parte baixa da tabela. Penso que há equipas que já estão bem estruturadas e, se assim for, o nosso futebol vai melhorar.
 
O que pensa sobre o futebol de formação em Angola?
Nós em Angola falamos muito da formação, mas não apostamos nela. Os formadores são poucos e com meios próprios têm feito um grande trabalho, formando bons jogadores. Estes mesmos formadores não têm apoios. Falo concretamente do Ti Nandinho, um homem que lapidou o meu talento para o futebol e que tem lutado bastante, tem pedido apoios, mas nunca os recebeu. Apesar disso, é alguém que tem feito despontar grandes talentos, não só para clubes, mas também para a nossa seleção. Temos de falar menos da formação e apoiar mais, só assim o futebol angolano vai ganhar, com apoios, dedicação e sustentabilidade.
 
Que opinião sobre o atual estado administrativo da FAF resultante da suspensão do último ato eleitoral...
É uma situação que atrapalha todo o nosso futebol. Esta situação tinha de ser vista rapidamente. Não quero alongar-me muito sobre este tema, mas precisamos de alguém na FAF para dirigir o nosso futebol.
 
Entrevista realizada por Romilson Teixeira






 



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