Como um jogo em Kiev, Mário Soares, o Marselha e três operações ao joelho salvaram Futre de ir à tropa
Paulo Futre com Mário Soares, por quem passou a rezar sempre
O almirante Gouveia e Melo e outros
conservadores que me desculpem, mas felizmente faço parte de uma geração que
não viveu o serviço militar obrigatório. Tínhamos o Dia da Defesa Nacional e
quem quisesse seguir a carreira militar que o fizesse, mas sem uma
pós-adolescência condicionada. Se assim o é, devemo-lo a histórias como as de Paulo
Futre.
Em abril de 1986, quando tinha 20
anos, o antigo internacional português foi fazer a inspeção a Setúbal, um dia
após ter dado a vitória ao FC
Porto sobre o Vitória
Futebol Clube precisamente na mesma cidade, em jogo da penúltima jornada do
campeonato que praticamente garantiu o título nacional aos dragões.
O dia da inspeção transformou-se, por isso, quase numa sessão de autógrafos a
militares e futuros soldados.
Poucos meses depois, ficou a
saber do seu destino: apto. Teria de se apresentar em maio do ano seguinte no
quartel de Castelo Branco, o que lhe valeu pesadelos logo a partir de janeiro.
A possibilidade de ficar careca e sobretudo o atrofio que a tropa podia
significar na sua carreira eram as principais preocupações de Futre. Até certa altura, foi-lhe valendo
a belíssima campanha do FC
Porto na Taça
dos Campeões Europeus em 1986-87. Nas meias-finais, em abril de 1987, os dragões
mediram forças com o Dínamo Kiev, que na altura era o detentor da Taça das
Taças e constituía a base da seleção
da União Soviética. Perante a dificuldade deste obstáculo e para motivar as
suas tropas, Pinto
da Costa falou com o ministro da Defesa para adiar a entrada de Futre
na tropa para o turno de setembro, de forma a estar presente na final (marcada
para 27 de maio) caso os azuis
e brancos lá chegassem. E o governante aceitou. O extremo
montijense respondeu em campo e marcou um grande golo na vitória sobre os
ucranianos nas Antas, na primeira-mão (2-1).
No jogo de Kiev, os dragões
repetiram o resultado e apuraram-se para a final. “Era o único jogador em campo
que não pensava apenas na final de Viena. A minha grande preocupação era
livrar-me de ir para a tropa na semana seguinte. Cada minuto da segunda parte
parecia uma hora. Nunca mais acabava. Nunca mais vinha o momento em que eu
podia dizer ao exército para esperar por mim mais alguns meses. Até que chegou
o apito final. O jogo terminou com o mesmo resultado que se verificava ao
intervalo e o FC
Porto estava na final. Foi um prazer que ainda não tinha sentido durante
toda a minha carreira. Os meus colegas diziam: ‘Estamos na final’, ao que eu
respondia: ‘E eu não vou à tropa’, no meio de lágrimas de alegria e alívio”,
contou no livro El Portugués.
Entretanto, Futre
ganhou a Taça
dos Campeões Europeus pelo FC
Porto após a vitória sobre o Bayern
Munique na final (2-1) e pouco depois assinou pelo Atlético
Madrid… supostamente a dois meses de entrar na tropa. “Ninguém, no Atleti,
perguntou pela minha situação militar e eu fechei-me em copas. Mas tinha medo
que um deles se lembrasse e o contrato fosse imediatamente cancelado. Pinto
da Costa a mesma coisa. Era o único que sabia do meu problema com a tropa. Rezámos
para que os espanhóis não se lembrassem de tocar no assunto, assinámos e
respirámos fundo. Acontecesse o que acontecesse, aquele contrato já ninguém nos
podia tirar. Estava assinado, selado e eu era jogador do Atlético
Madrid, com direito aos valores que tinham ficado escritos”, recordou. Entretanto, o extremo foi de férias
para Portugal, apresentou-se na pré-época do Atleti
em julho e eis que o escândalo rebentou em agosto, quando os meios de
comunicação social de Espanha noticiaram que a grande contratação dos colchonerosteria de desfalcar a equipa para passar 16 meses na tropa. Caso não se apresentasse
no serviço militar, teria de estar cinco anos sem pisar solo português. Os advogados de Futre
entraram imediatamente em cena e conseguiram colocar o jogador em contacto
telefónico com o então Presidente da República, Mário Soares, a partir da
embaixada portuguesa em Madrid. “Sabes que eu compreendo a tua posição. É o teu
sonho, vais ganhar muito dinheiro, que dará tranquilidade financeira a ti e à
tua família. Mas, para o bem da nação, e para dares o exemplo aos nossos
jovens, tens de te apresentar no quartel de Castelo Branco no próximo dia 1 de
setembro”, disse o chefe de Estado.
“Eu também entendo o senhor
Presidente, mas posso fazer-lhe uma pergunta? Vamos entrar em guerra com outro
país brevemente? Diga-me, sinceramente”, questionou o futebolista. “Se Portugal
entrar em guerra amanhã, não tenha a mínima dúvida que eu serei o primeiro a
pegar numa arma e a defender o meu país. Mas, com todo o respeito, senhor Presidente,
o grande exemplo para os nossos jovens seria verem-me a ser o primeiro jogador
português a ter êxito no estrangeiro. E pode ter a certeza que eu vou elevar
bem alto o nome de Portugal. Peço apenas que não me destruam a minha vida e o
meu sonho, ao obrigarem-me a ir para um quartel militar não estando em guerra.
Não acha que tenho razão, senhor Presidente?”, prosseguiu. Reticente, Soares prometeu não tentar
extraditar Futre
e agendou novo contacto telefónico entre ambos para dois dias depois. O jogador
temia o pior, mas as notícias do chefe de Estado foram bastante positivas: “Para
mim, como Presidente da República, é uma honra anunciar-te que és o primeiro
português a ter estatuto de alta competição de elite. Como resultado, vais ter
um adiamento de oito anos do serviço militar. Mas tens de me prometer uma
coisa: tens de triunfar por Portugal.” Eternamente grato ao socialista, Futre
fez questão de o ir cumprimentar meses depois na embaixada portuguesa em
Madrid, mesmo estando com o pé partido e engessado. E também passou a rezar
sempre por Mário Soares (tal como fazia por ele próprio e por Portugal) antes
de entrar em campo. O documento do estatuto de alta
competição, porém, tinha uma cláusula: se interrompesse a estadia no
estrangeiro e regressasse a Portugal durante os oito anos do adiamento, teria
de ir à tropa. Ainda durante esse período, Futre
deixou o Atlético
Madrid e assinou pelo Benfica
em janeiro de 1993 no culminar de uma novela que quase o fez regressar a Alvalade:
chegou a acordo com o Sporting,
mas o presidente Sousa
Cintra não apareceu no aeroporto para o receber.
Uma semana depois de rubricar o
vínculo pelos encarnados,
a polícia militar apareceu-lhe à porta para o informar que tinha de se
apresentar no Ministério da Defesa. Após uma reunião com representantes do
exército, ficou decidido que Futre
teria de se apresentar em Castelo Branco no dia 1 de setembro de 1993. “A minha
única solução seria jogar bem durante esse tempo [a partir de janeiro], para
despertar o interesse de um clube estrangeiro e voltar a sair. Mais uma vez, só
havia uma forma de evitar a tropa: dentro do relvado”, confessou no livro El
Portugués. E a verdade é que, a 1 de
setembro de 1993, Futre
já estava vinculado aos franceses do Marselha,
que haviam acabado de ganhar a Liga
dos Campeões. E assim voltava a ser válido o tal adiamento de oito anos
concedido por Mário Soares em 1987. Ora, esse período de adiamento chegou
ao fim no final do verão de 1995, quando o internacional português já jogava no
AC
Milan. De imediato surgiram notícias a acusar o jogador de ser “refratário
da tropa portuguesa” e a dar conta de que a polícia militar estava à sua procura. Depois de o presidente dos
milaneses, Silvio Berlusconi, ter acalmado a situação com a imprensa, seguiu-se
uma batalha jurídica entre os advogados de Futre
e o exército português, com a defesa do jogador a basear-se nas duas cirurgias de
que o joelho direito do futebolista havia sido alvo. Desta feita, já tinha
passado o limite do tempo para se apresentar na tropa e, caso fosse a Portugal,
seria preso.
Em outubro de 1995, Futre
foi operado por uma terceira vez ao joelho direito e aproveitou a cirurgia para
a utilizar na sua defesa junto do exército português, até que em abril de 1996
recebeu uma carta na sua casa em Milão a informá-lo que, “por motivos físicos”
passaria “automaticamente à reserva militar”. “No dia seguinte apanhei um avião
e voltei a Portugal. Depois de oito meses sem poder visitar o meu país e muitos
dos meus familiares”, contou no livro autobiográfico.
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