terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Como um jogo em Kiev, Mário Soares, o Marselha e três operações ao joelho salvaram Futre de ir à tropa

Paulo Futre com Mário Soares, por quem passou a rezar sempre
O almirante Gouveia e Melo e outros conservadores que me desculpem, mas felizmente faço parte de uma geração que não viveu o serviço militar obrigatório. Tínhamos o Dia da Defesa Nacional e quem quisesse seguir a carreira militar que o fizesse, mas sem uma pós-adolescência condicionada. Se assim o é, devemo-lo a histórias como as de Paulo Futre.
 
Em abril de 1986, quando tinha 20 anos, o antigo internacional português foi fazer a inspeção a Setúbal, um dia após ter dado a vitória ao FC Porto sobre o Vitória Futebol Clube precisamente na mesma cidade, em jogo da penúltima jornada do campeonato que praticamente garantiu o título nacional aos dragões. O dia da inspeção transformou-se, por isso, quase numa sessão de autógrafos a militares e futuros soldados.
 
 
Poucos meses depois, ficou a saber do seu destino: apto. Teria de se apresentar em maio do ano seguinte no quartel de Castelo Branco, o que lhe valeu pesadelos logo a partir de janeiro. A possibilidade de ficar careca e sobretudo o atrofio que a tropa podia significar na sua carreira eram as principais preocupações de Futre.
 
Até certa altura, foi-lhe valendo a belíssima campanha do FC Porto na Taça dos Campeões Europeus em 1986-87. Nas meias-finais, em abril de 1987, os dragões mediram forças com o Dínamo Kiev, que na altura era o detentor da Taça das Taças e constituía a base da seleção da União Soviética. Perante a dificuldade deste obstáculo e para motivar as suas tropas, Pinto da Costa falou com o ministro da Defesa para adiar a entrada de Futre na tropa para o turno de setembro, de forma a estar presente na final (marcada para 27 de maio) caso os azuis e brancos lá chegassem. E o governante aceitou.
 
O extremo montijense respondeu em campo e marcou um grande golo na vitória sobre os ucranianos nas Antas, na primeira-mão (2-1).
 
 
No jogo de Kiev, os dragões repetiram o resultado e apuraram-se para a final. “Era o único jogador em campo que não pensava apenas na final de Viena. A minha grande preocupação era livrar-me de ir para a tropa na semana seguinte. Cada minuto da segunda parte parecia uma hora. Nunca mais acabava. Nunca mais vinha o momento em que eu podia dizer ao exército para esperar por mim mais alguns meses. Até que chegou o apito final. O jogo terminou com o mesmo resultado que se verificava ao intervalo e o FC Porto estava na final. Foi um prazer que ainda não tinha sentido durante toda a minha carreira. Os meus colegas diziam: ‘Estamos na final’, ao que eu respondia: ‘E eu não vou à tropa’, no meio de lágrimas de alegria e alívio”, contou no livro El Portugués.
 
 
Entretanto, Futre ganhou a Taça dos Campeões Europeus pelo FC Porto após a vitória sobre o Bayern Munique na final (2-1) e pouco depois assinou pelo Atlético Madrid… supostamente a dois meses de entrar na tropa. “Ninguém, no Atleti, perguntou pela minha situação militar e eu fechei-me em copas. Mas tinha medo que um deles se lembrasse e o contrato fosse imediatamente cancelado. Pinto da Costa a mesma coisa. Era o único que sabia do meu problema com a tropa. Rezámos para que os espanhóis não se lembrassem de tocar no assunto, assinámos e respirámos fundo. Acontecesse o que acontecesse, aquele contrato já ninguém nos podia tirar. Estava assinado, selado e eu era jogador do Atlético Madrid, com direito aos valores que tinham ficado escritos”, recordou.
 
Entretanto, o extremo foi de férias para Portugal, apresentou-se na pré-época do Atleti em julho e eis que o escândalo rebentou em agosto, quando os meios de comunicação social de Espanha noticiaram que a grande contratação dos colchoneros teria de desfalcar a equipa para passar 16 meses na tropa. Caso não se apresentasse no serviço militar, teria de estar cinco anos sem pisar solo português.
 
Os advogados de Futre entraram imediatamente em cena e conseguiram colocar o jogador em contacto telefónico com o então Presidente da República, Mário Soares, a partir da embaixada portuguesa em Madrid. “Sabes que eu compreendo a tua posição. É o teu sonho, vais ganhar muito dinheiro, que dará tranquilidade financeira a ti e à tua família. Mas, para o bem da nação, e para dares o exemplo aos nossos jovens, tens de te apresentar no quartel de Castelo Branco no próximo dia 1 de setembro”, disse o chefe de Estado.

 
“Eu também entendo o senhor Presidente, mas posso fazer-lhe uma pergunta? Vamos entrar em guerra com outro país brevemente? Diga-me, sinceramente”, questionou o futebolista. “Se Portugal entrar em guerra amanhã, não tenha a mínima dúvida que eu serei o primeiro a pegar numa arma e a defender o meu país. Mas, com todo o respeito, senhor Presidente, o grande exemplo para os nossos jovens seria verem-me a ser o primeiro jogador português a ter êxito no estrangeiro. E pode ter a certeza que eu vou elevar bem alto o nome de Portugal. Peço apenas que não me destruam a minha vida e o meu sonho, ao obrigarem-me a ir para um quartel militar não estando em guerra. Não acha que tenho razão, senhor Presidente?”, prosseguiu.
 
Reticente, Soares prometeu não tentar extraditar Futre e agendou novo contacto telefónico entre ambos para dois dias depois. O jogador temia o pior, mas as notícias do chefe de Estado foram bastante positivas: “Para mim, como Presidente da República, é uma honra anunciar-te que és o primeiro português a ter estatuto de alta competição de elite. Como resultado, vais ter um adiamento de oito anos do serviço militar. Mas tens de me prometer uma coisa: tens de triunfar por Portugal.”
 
Eternamente grato ao socialista, Futre fez questão de o ir cumprimentar meses depois na embaixada portuguesa em Madrid, mesmo estando com o pé partido e engessado. E também passou a rezar sempre por Mário Soares (tal como fazia por ele próprio e por Portugal) antes de entrar em campo.
 
O documento do estatuto de alta competição, porém, tinha uma cláusula: se interrompesse a estadia no estrangeiro e regressasse a Portugal durante os oito anos do adiamento, teria de ir à tropa.
 
Ainda durante esse período, Futre deixou o Atlético Madrid e assinou pelo Benfica em janeiro de 1993 no culminar de uma novela que quase o fez regressar a Alvalade: chegou a acordo com o Sporting, mas o presidente Sousa Cintra não apareceu no aeroporto para o receber.
 
 
Uma semana depois de rubricar o vínculo pelos encarnados, a polícia militar apareceu-lhe à porta para o informar que tinha de se apresentar no Ministério da Defesa. Após uma reunião com representantes do exército, ficou decidido que Futre teria de se apresentar em Castelo Branco no dia 1 de setembro de 1993. “A minha única solução seria jogar bem durante esse tempo [a partir de janeiro], para despertar o interesse de um clube estrangeiro e voltar a sair. Mais uma vez, só havia uma forma de evitar a tropa: dentro do relvado”, confessou no livro El Portugués.
 
E a verdade é que, a 1 de setembro de 1993, Futre já estava vinculado aos franceses do Marselha, que haviam acabado de ganhar a Liga dos Campeões. E assim voltava a ser válido o tal adiamento de oito anos concedido por Mário Soares em 1987.
 
Ora, esse período de adiamento chegou ao fim no final do verão de 1995, quando o internacional português já jogava no AC Milan. De imediato surgiram notícias a acusar o jogador de ser “refratário da tropa portuguesa” e a dar conta de que a polícia militar estava à sua procura.
 
Depois de o presidente dos milaneses, Silvio Berlusconi, ter acalmado a situação com a imprensa, seguiu-se uma batalha jurídica entre os advogados de Futre e o exército português, com a defesa do jogador a basear-se nas duas cirurgias de que o joelho direito do futebolista havia sido alvo. Desta feita, já tinha passado o limite do tempo para se apresentar na tropa e, caso fosse a Portugal, seria preso.
 
 
Em outubro de 1995, Futre foi operado por uma terceira vez ao joelho direito e aproveitou a cirurgia para a utilizar na sua defesa junto do exército português, até que em abril de 1996 recebeu uma carta na sua casa em Milão a informá-lo que, “por motivos físicos” passaria “automaticamente à reserva militar”. “No dia seguinte apanhei um avião e voltei a Portugal. Depois de oito meses sem poder visitar o meu país e muitos dos meus familiares”, contou no livro autobiográfico. 



 




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