Em Angola
desde 2015, na altura para trabalhar nas camadas jovens do 1º de Agosto, Pedro
Gonçalves trabalha há dois anos para a Federação
Angolana de Futebol e assumiu o comando técnico da seleção principal após o
CAN 2019.
Em entrevista divida em duas
partes (esta é a primeira, pode ler a segunda CLICANDO AQUI), o treinador português de 44 anos recorda o seu
trajeto de quase um quarto de século como treinador, nomeadamente o tempo que
passou na formação do Sporting, fala do estado atual do futebol
angolano e revela as expectativas para o futuro dos Palancas
Negras.
ROMILSON TEIXEIRA - Quem é Pedro Gonçalves? Como se define?
PEDRO GONÇALVES - Em
auto-percepção sou uma pessoa genuína, transparente, descontraída, apreciadora
da verdade e da justiça. Amo a minha família cultivo as minhas amizades e adoro
a minha profissão.
Em que região de Portugal nasceu e como foi a sua infância?
Toda a minha família é originária
de Trás-Os-Montes, região do norte interior de Portugal, de gente valente,
genuína, respeitadora e trabalhadora da qual me orgulho muito e revejo. Por
necessidade laboral os meus pais vieram jovens para Lisboa, cidade encantadora
onde nasci, porém cresci e vivi a maior parte da minha infância e juventude em
Fernão Ferro, na margem sul do Tejo, junto a Lisboa. Hoje uma zona
completamente integrada na zona metropolitana de Lisboa, mas à época era
praticamente uma aldeia que me permitiu crescer num ambiente rico em atividades
físicas no exterior junto dos meus amigos, no entanto com carências ao nível
dos recursos culturais e desportivos. Neste último aspeto louvo os esforços da
minha família, em especial da minha mãe e irmã (cinco anos mais velha) que
sempre tiveram essa noção e procuraram colmatar o quanto possível esse
afastamento. Com isto, acabei por crescer em ambientes diversificados com
perspetivas de vida diferentes que terão contribuído significativamente para a
minha personalidade e educação.
Como entrou para o mundo do futebol? Chegou a ser futebolista?
Como já referi, cresci num
ambiente que me proporcionou uma grande riqueza do ponto de vista motor, mas
que não dispunha de clubes nem instalações desportivas. Ainda assim, sempre
adorei as atividades desportivas e desde pequenino sempre fui muito competitivo
em tudo que fazia. Aliás, o meu dia-a-dia com os amigos, fora e dentro da
escola, era feito de competir para tudo, no sentido de alcançar algo que depois
partilhávamos, pois o que quer que conseguíssemos só tinha valor desfrutando
com os amigos. Com o passar do tempo a banda foi criando coletividades que à
época ainda eram algo deficitárias a proporcionar a prática desportiva. Comecei
a jogar futebol de salão no escalão de iniciados no Centro de Solidariedade
Social de Pinhal de Frades, ao mesmo tempo que também praticava Natação na
Sociedade Filarmónica União Artística Piedense. Mais crescido, no escalão de
juvenis, decidi deixar de nadar e ir jogar futebol de 11, na altura no clube
junto à escola onde estudava, o Atlético Clube de Arrentela. Foi uma mudança
completa onde praticamente não conhecia ninguém ao início. Na margem sul,
apesar de hoje em dia estar melhor, à época havia poucos clubes que tivessem futebol
de 11. Recordo que no primeiro treino éramos cerca de 150 miúdos a tentar ficar
na equipa de juvenis do Arrentela. Contar isto, hoje em dia, fica difícil de
acreditar, mas ao tempo a esmagadora maioria dos miúdos queria jogar futebol e
na margem sul havia poucos clubes. Acabei por ir jogando em clubes de nível
distrital. Claro que em miúdo ambicionava vir a ser jogador profissional e até
tinha algum jeito, mas muito longe de ser um talento. Assim foi com
naturalidade que, aquando da entrada na faculdade e simultaneamente com a
possibilidade de ser treinador de uma equipa de jovens, deixei de jogar futebol
ao nível federado passando só ao nível universitário.
Desde sempre sonhou ser treinador de futebol ou tinha outros sonhos?
Curioso, quando era pequeno
sonhava ser mecânico de automóveis, pois adorava carros e motores, achava
fascinante esse mundo. Conforme fui crescendo a paixão pelas atividades
desportivas despontou. Adoro quase todas as modalidades desportivas e
competições sou um consumidor nato de desporto. O futebol, naturalmente por ser
o mais enraizado na sociedade portuguesa, foi o que acabou por mais me seduzir.
Assim, recordo que desde cerca dos 12/13 anos de idade me mentalizei que queria
ser professor de educação física e treinador. Aliás, as minhas escolhas
escolares desde tenra idade foram nesse sentido, pelo que, o meu grande objetivo
era tirar o Curso de Desporto na Faculdade de Motricidade Humana (FMH).
Curiosamente, a faculdade era junto à minha primeira residência quando nasci.
Possivelmente foi premonitório.
Quando e em que clube teve a sua primeira experiência como treinador?
Qual era a sua função na equipa técnica?
A minha primeira experiência como
treinador foi em futsal com o escalão de sub-11. Com 17 anos e a estudar no 11.º
ano apenas jogava futsal - que, entretanto, tinha derivado do futebol de salão
- nos torneios de verão quando parava a época desportiva no futebol. O clube
onde comecei a jogar o então futebol de salão tinha aberto o escalão de sub-11
e sabiam que eu estudava desporto e ambicionava ser treinador, pelo que me
convidaram para ser treinador. Foi a minha primeira experiência, à qual me
dediquei muito e foi entusiasmante. Recordo que dessa equipa ainda saiu um
jogador para o Sporting Clube de Portugal, o Tiago Coelho, hoje em dia meu
colega de profissão. Acabou por ser uma curta experiência, pois os afazeres
escolares e desportivos como jogador de futebol e o auxílio profissional ao meu
pai, que tinha uma mercearia, acabavam por não me permitir esticar o tempo para
tudo. No entanto, com a entrada na FMH e o deixar de jogar futebol federado
tive o convite do Amora Futebol Clube para ser treinador adjunto na equipa de sub-14.
Essa acabou por ser mesmo a minha primeira experiência como treinador de futebol
de 11.
Como foi o início da sua carreira? Quais foram as principais
dificuldades que enfrentou e como fez para superá-las?
No início da minha carreira como
treinador a inexperiência era muita. Acabava por seguir muito do que tinha
aprendido como jogador, o que é comum, com conhecimentos mínimos dos fatores
metodológicos, científicos e pedagógicos. Felizmente que, por educação de casa,
sempre tive espírito autocrítico que me motivou a querer aprender mais, daí que
mesmo estando no início do curso superior de Ciências do Desporto, tirei o
curso de 1.º nível de treinador de futebol, iniciando aí a caminhada até
atingir o UEFA Pro [4.º nível]. Isto além de ter realizado múltiplas formações
paralelas e da Licenciatura em Ciências do Desporto e a Pós-graduação em Treino
de Alto Rendimento. Ainda assim, considero que tão significativo quanto o meu
percurso de formação individual foi ter tido a possibilidade de, ao longo do
meu percurso profissional, ter compartilhado experiências enriquecedoras com os
meus companheiros de trabalho, num espírito crítico e evolutivo que muito
contribuiu e ainda contribui para a minha formação profissional.
Quais foram os treinadores que serviram de referência para si no início
da sua carreira? Teve algum professor ou alguém que considere ser o seu mentor?
A minha formação académica é
contemporânea de um trabalho de formação no futebol jovem em Portugal que ainda
hoje é uma referência e foi protagonizado pelos professores Carlos Queiroz e
Nelo Vingada. Eles, em conjunto com o professor Jesualdo Ferreira, marcaram
muito da forma como ainda hoje alicerço o processo de treino e competição em futebol.
Evidentemente o futebol evoluiu imenso desde então, mas existem bases e
princípios que são fundamentais e que em muito se alicerçam na perspetiva dos
referidos.
Qual foi a sua pior experiência ou o pior momento que teve enquanto
treinador?
Estou prestes a completar 25 anos
como treinador de futebol e os bons momentos felizmente superam de forma
esmagadora os episódios menos bons. No cômputo destes 25 anos, aos poucos maus
momentos, pouco significado lhes atribuo. Fazem parte do percurso e serviram
para o consolidar.
Alguma vez sentiu o seu trabalho condicionado pela direção do clube que
representava? Geralmente como é a sua relação com as direções dos clubes em que
passou?
Cada qual deve ser competente e
responsável nas suas funções. Evidentemente cabe aos dirigentes emanar e
executar as diretivas dos trabalhos para os quais têm de acreditar e contribuir
fornecendo as melhores condições possíveis aos treinadores. Dessa forma, sempre
e em todo o lado expus as minhas interpretações e procurei enquadrar dentro do
exigido. Em caso algum tive dirigentes que se imiscuíssem ou alterassem as
minhas decisões. Tudo se torna mais eficaz quando cada qual no exercício das
suas funções é cooperante e respeitador. Situações de conflito existem e
existirão sempre, mas quando as pessoas têm boa formação humana e profissional
tudo se ultrapassa.
Como lida com a pressão constante dos adeptos? Acha que o comportamento
dos adeptos tem influência direta nos resultados da equipa?
Quem compete quer naturalmente
vencer. Competir é uma das dimensões fulcrais do Desporto. Além disso, em todas
as profissões existe pressão para triunfar e afirmar perante os demais
concorrentes. Encaro isso com naturalidade e espírito positivo. O futebol,
sendo uma modalidade desportiva de massas, por vezes as pessoas extravasam para
além dos limites do tolerável porque estão imiscuídos na turba e são levados a
perder a sensatez. A falta de educação e cultura desportiva na maior parte das
vezes é o principal fator para comportamentos impróprios. Todos querem ganhar,
porém acima das conquistas estão os valores humanos e éticos e disso não abro
mão.
Todos os profissionais de futebol
têm de estar preparados para encarar com equilíbrio emocional as conquistas e
as derrotas, com os consequentes momentos de demonstração de euforia ou
frustração por parte dos adeptos. Temos de compreender que sendo um desporto de
massas vive da quantidade de gente que se emociona e apaixona fazendo dos seus
intervenientes elementos idolatrados que rapidamente podem passar de amados a
odiados e vice-versa.
Concretamente naquilo que tem
sido a base da equipa, temos jogadores com bastante maturidade competitiva, habituados
a lidar com a pressão. No entanto, gradualmente temos procurado introduzir
elementos mais jovens que por vezes carecem de maior apoio e orientação para
saber lidar com as circunstâncias. Os jogadores são profissionais cada vez mais
preparados em vários fatores de rendimento desportivo, mas são também, seres
humanos com emoções e sensações. É evidente que um ambiente de incentivo à
equipa conduzirá a uma maior motivação e foco nos objetivos a atingir.
Sinto que existe um ambiente de
constante desconfiança de uma boa parte da população angolana
em redor da seleção
principal, como se os elementos da seleção
principal fizessem o seu desempenho com incúria e sem dedicação. Apesar dos
recursos que temos disponíveis estamos cientes que temos de provar o quanto nos
entregamos para o bem comum e esforçamos no sentido de melhorar os nossos
desempenhos. Podemos não ganhar ao adversário, mas temos de sair de campo
sempre de consciência tranquila que demos o máximo em prol de Angola.
A palavra chave é compromisso. Vamos procurar dinamizar uma força que una
jogadores, staff, dirigentes aos cidadãos angolanos
em Angola
e na diáspora.
Olhando para o seu currículo salta à vista a passagem pelo Sporting. O
que essa experiência representou para si?
No Sporting passei 16 anos da
minha vida, desde 1999 a 2015. Muito daquilo que sou pessoalmente e
profissionalmente adquiri nesse grande clube. As experiências que vivenciei
permitiram-me ser mais competente. Comecei como scout da formação durante duas épocas e depois fui treinador
principal de equipas da formação durante 14 temporadas. Passei por praticamente
todos os escalões de formação do clube. Tive o privilégio de contribuir na
formação profissional e pessoal de centenas de jogadores profissionais e
inclusive uma parte significativa deles são elite mundial na atualidade. Sempre
foi esse o nosso principal elemento de sucesso, mas para além disso, não sendo
o nosso principal foco na formação, orgulho-me de ter conseguido ser campeão em
11 das 14 épocas em que tive oportunidade de orientar. Acima de tudo, a cultura
desportiva que à época se praticava no clube entusiasmava-me e motivava-me
imenso. As relações estabelecidas entre jogadores, treinadores, dirigentes e
demais elementos do staff era de uma
impressionante camaradagem. Esse quanto a mim foi o principal fator de sucesso
na Academia Sporting durante anos, adicionando evidentemente a competência dos
intervenientes.
Quais as melhores memórias que guarda do tempo em que trabalhou no
Sporting?
As minhas melhores memórias são
sobretudo das pessoas. O clube recentemente tem mudado muito, mas ainda lá
tenho muitos amigos que me fazem sentir que continua a ser a minha casa. Durante
anos e anos o Sporting foi a minha segunda casa, passava lá imenso tempo, mesmo
quando não estava a trabalhar acompanhava os trabalhos dos meus colegas pois
sentia encadeamento e unidade em todo o processo. Vivi tempos únicos da
Academia Sporting e jamais esquecerei diversos momentos desportivos e de
tertúlia com os meus companheiros.
Já trabalhava em Angola,
no Clube Desportivo 1° D'Agosto, quando aconteceu o ataque à academia de Alcochete. Como viu a situação?
Infelizmente os últimos tempos do
clube têm sido de grande agitação que, quanto a mim se deve a uma crise de
valores que apareceram devido à equipa AA de futebol profissional não ganhar o
título de campeão de Portugal faz muitos anos. Deu origem a populismos e com
isso inversão de valores, que originaram comportamentos menos próprios. Quando
assisti pela televisão a todos aqueles acontecimentos, para além de
estupefacto, fiquei profundamente triste e sobretudo preocupado como estariam
os muitos amigos que lá tenho. Felizmente não houve agressões físicas que
tenham provocado lesões graves, mas a dimensão da lesão emocional ao Sporting e
aos verdadeiros sportinguistas foi devastadora.
Acha que esse acontecimento influenciou negativamente nos resultados
atuais da equipa de futebol e a relação entre a atual direção e os adeptos?
Certamente que influenciou e vai
influenciar ainda por mais algum tempo. As repercussões ultrapassam o momento,
o clube saiu altamente lesado.
Pensa voltar a treinar em Portugal? E pensa um dia treinar a equipa
principal do Sporting?
Neste momento sou selecionador de
Angola
e esse é o meu foco profissional, que muito me absorve. Sou português e
profissional de futebol, desde que o projeto me seduza profissional e
pessoalmente poderei treinar em qualquer parte do mundo. O futuro a Deus
pertence.
É inevitável o assunto Covid-19. O que acha que deve ser feito para
combatermos esta pandemia?
Neste momento é tudo muito
recente e incerto. Esta doença evidencia a fraqueza da sociedade contemporânea.
Tenho fé que a humanidade consiga ultrapassar esta fase e evoluir para um
estado de melhor qualidade de vida, tal como na história já passámos por
momentos altamente nefastos. Este é o momento de recolhimento, reflexão e
esperança. Oxalá que, quando tudo isto passar, a humanidade seja mais solidária
e cooperante. Aproveito para louvar todos aqueles que no dia-a-dia arriscam a
sua saúde para o bem da sociedade. A nós que trabalhamos em Desporto o dever
neste momento é respeitar a ordem de recolhimento.
Como olha para a situação atual do mundo e para os estragos feitos pelo
novo coronavírus?
Este é tempo de nos preocuparmos
com a saúde e com a vida. A seu tempo havemos de seguir em frente com as
condições económicas possíveis. Toda a economia mundial levará um rombo que
será tanto maior quanto maior for o interregno da maioria das atividades
económicas. O desporto e o futebol são apenas as coisas mais importantes das
coisas menos importantes da vida.
Vários desportistas e dirigentes desportivos estão afetados, e quase
todos contraíram o vírus no exercício da sua profissão. Acha que os clubes e as
federações não tomaram as devidas medidas na altura certa? E que conselho deixa
a todos para que possamos juntos evitar mais mortes e a propagação do vírus?
Este é uma situação que a nossa
sociedade contemporânea nunca tinha passado, como tal é difícil encontrar
receitas para as várias autoridades competentes seguirem. São nestes momentos
que os grandes líderes políticos e dirigentes se destacam pela sagacidade das
suas decisões. Existe um conjunto de hipóteses que se colocam e por certo ao
nível planetário temos cientistas altamente competentes com o máximo de
recursos possíveis a procurar avidamente uma solução para esta calamidade
mundial. Só espero que quando houver solução haja humanismo.
Entrevista realizada
por Romilson Teixeira
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