Flávio das Neves leva mais de 20 anos como treinador |
Foi colega de equipa de Vítor
Damas, orientado por José Maria Pedroto e presidido por Pimenta Machado no Vitória
de Guimarães, esteve no Vitória
de Setúbal com Malcolm Alisson a treinador, Fernando
Oliveira a presidente e craques como Jordão, Eurico, Manuel
Fernandes e Mészáros como companheiros, passou pelo Benfica
e despontou e acabou na Sanjoanense.
Em entrevista, o antigo lateral
esquerdo Flávio das Neves recorda a carreira de futebolista, revela a
característica que no seu entender o impediu de chegar mais longe, fala sobre o
seu trajeto enquanto treinador e lembra o tempo em que apostou em Pizzi quando
o agora internacional português estava desacreditado no Ribeirão.
RUI COELHO - O Flávio representou vários clubes da I
Divisão durante a sua carreira de jogador, mas foi na Sanjoanense
que passou mais tempo, enquanto jogador e mais tarde como treinador. Qual é a
importância da Sanjoanense
na sua vida pessoal e profissional?
FLÁVIO DAS NEVES - Tem muita,
apesar de não ter começado na Sanjoanense,
foi através da Sanjoanense
que eu consegui chegar à I
Divisão.
Quando regressei ao clube, deram-me
a oportunidade de, no final da minha carreira, aos 38 anos, de começar como
treinador dos juniores. Em seguida fui treinando outros clubes, voltei
novamente à Sanjoanense
e aí assumi a equipa sénior. Entretanto já regressei umas três ou quatro vezes,
sou natural de São João da Madeira, sou sócio da Sanjoanense
e a minha vida não só desportiva, como profissional, está diretamente ligada à Sanjoanense
desde os 22 anos, quando cheguei ao clube como jogador, até agora, com 62 anos.
É um clube que me diz muito, que me ajudou muito a crescer, porque o futebol
ajuda a promoção social das pessoas, e se sou conhecido e acarinhado pelos
sanjoanenses na cidade e no país muito devo àquilo que a Sanjoanense
fez por mim. Normalmente costuma-se dizer que santos da terra não fazem
milagres, mas no meu caso eu acho que nestes anos todos nunca falhei, as coisas
correram sempre bem. Tenho quase a certeza que não vou terminar a carreira de
treinador sem voltar novamente à Sanjoanense.
“Consegui chegar ao Benfica, mas ao fim de três meses pedi para ir embora”
O Flávio passou por clubes históricos de Portugal e realizou 214 jogos
na I
Divisão. Que balanço faz da sua carreira?
A minha carreira enquanto jogador
é algo de que me orgulho muito, mas eu penso que dadas as condições técnicas,
físicas, a vontade que tinha pelo o jogo, o respeito que tinha pela profissão,
penso que poderia ter ido muito mais além.
Nos anos em que joguei na I
Divisão, representei somente três clubes históricos do futebol português,
os dois Vitórias (Setúbal
e Guimarães)
e a Académica.
Fazia os jogos todos, ia às seleções, mas nunca ficava. Consegui inclusivamente
chegar ao Benfica,
mas só estive lá três meses e pedi para ir embora.
Só não fui mais longe porque
faltava-me uma coisa que é fundamental, a agressividade nos duelos. Eu tinha
algum receio do choque. Muitas pessoas perguntavam-me como é que era possível
um jogador que tinha essas fragilidades conseguir fazer 200 e muitos jogos na I
Divisão e sempre a titular, mas eu vejo isso ao contrário: se não tivesse a
falta de agressividade que tinha nos duelos, eu tinha chegado muito mais longe
no futebol. Aliás, houve uma época no Vitória
de Setúbal em que consegui receber um prémio de lateral esquerdo do ano,
num onze que só tinha jogadores do Benfica,
FC
Porto e Sporting.
Fui chamado dez vezes aos treinos, mas vinha sempre para trás e ficavam os
grandes porque eles reconheciam um grande potencial em mim. Tinha o receio de
colocar o pé e do choque, mas eu compensava isso de outras maneiras. Não é fácil
um jogador com estas caraterísticas ter feito a carreira que eu fiz no futebol
português.
“Agradeço ao Arrifanense por tudo o que fez por mim”
Voltemos atrás no tempo. Nasceu em São João da Madeira, mas começou a
jogar futebol no Arrifanense.
Como foi a sua infância e como é que a bola entrou na sua vida? Quais foram os melhores momentos que viveu?
Relativamente à minha infância,
sou filho de um jogador. O meu pai foi profissional no Varzim, conseguiu ser
campeão e em dois anos subiu à I
Divisão. Eu e a minha mãe fomos para lá viver muito cedo, fui com um ano ou
dois de idade e saí com sete anos, assisti às subidas de divisão do Varzim,
acompanhei o meu pai como mascote dos Poveiros, portanto eu entrava de mão dada
com o meu pai em campo, nos jogos da I
Divisão.
Com a separação dos meus pais,
regressei a São João da Madeira e, pronto, como todos os miúdos a bola para mim
era tudo. Fui sempre um bom aluno, a minha mãe conseguiu manter-me na escola
apesar das dificuldades, onde concluí o 7.º ano na altura, ia para a missa de
manhã com a bola na mão e com as chuteiras calçadas, portanto tinha uma paixão
muito grande pelo futebol. Comprava bolas com o pouco dinheiro que tinha, a
maior parte dos outros miúdos brincava de outras maneiras, mas eu era
completamente diferente, eu vivia para o futebol de manhã à noite, com chuva ou
sol.
Então, aos 15 anos, foi parar ao Arrifanense.
Eu era muito pequeno, mas habilidoso, os meus colegas e muita gente dizia que
eu era dos melhores, mas como era pequenino, eu tinha medo de ir treinar à Sanjoanense
e não ficar, porque tinham sempre grandes equipas. Tinha aquela ideia muito
presente na minha cabeça e, caso isso acontecesse, seria uma vergonha para mim,
perante os meus colegas [risos]. Conquistei um campeonato distrital de juniores,
tínhamos uma grande equipa e gostei muito do Arrifanense.
Agradeço-lhes por tudo o que fizeram por mim, hoje tenho orgulho de que eles
possam dizer que eu fui o jogador que atingiu melhor currículo da história
deles.
Em 1975-76 surgiu a oportunidade de se estrear pela equipa principal do
Arrifanense.
Ainda se recorda desse dia? Qual foi a sensação?
Sim, recordo. Ainda era júnior,
no entanto já trabalhava com a equipa principal. Estreei-me em Cabeceiras de
Basto, contra o Cabeceirense, perdemos por 1-4 e eu era um menino a jogar no
meio dos mais velhos, numa III Divisão. Tinham um campo pequenino, chovia
muito, acusei um bocado a pressão devido a ser um miúdo tímido, mas lembro-me
que não joguei nada [risos].
Depois de uma passagem pelo Valecambrense, assinou pela Sanjoanense
no verão de 1979. Como era o clube naquela altura?
A Sanjoanense
naquela altura, tinha uma direção composta por grandes industriais que tinham
muito responsabilidade na cidade, muito fortes na indústria e no comércio, e em
que toda a gente colaborava e ajudava. Era uma direção fortíssima. Estávamos na
III Divisão e nesse ano conseguimos subir com uma equipa muito jovem e a seguir
fomos à final do campeonato nacional, com o Vasco
da Gama de Sines em Leiria. Perdemos perto do fim, mas subimos à II Divisão
e discutimos o título de campeão até às últimas duas jornadas.
Tínhamos em São João da Madeira
uma grande equipa de miúdos de 20/21 anos, onde mais tarde muitos de nós saíram
para a I
Divisão e havia um grande entusiasmo em torno do clube, as bancadas cheias,
porque tinham as equipas quase todas na I
Divisão nas diferentes modalidades.
Na altura o Estádio Conde Dias
Garcia estava completamente lotado em quase todos os jogos e estamos a falar de
uma II Divisão. Existia uma grande dinâmica e era fácil os diretores arranjarem
dinheiro no comércio, nos cafés e na indústria, coisa que nos dias que correm
não se verifica.
Na altura teve como companheiro de equipa Vermelhinho, um sanjoanense
de gema que viria a chegar ao FC
Porto e à seleção nacional. Como era ele na altura?
O Vermelhinho é meu amigo de
infância, eu era das Fontaínhas e ele vivia no Bairro da Saúde e jogávamos um
contra o outro. Fomos colegas de equipa nos seniores da Sanjoanense,
com 19 ou 20 anos, eu a médio esquerdo e ele a extremo esquerdo. Mais tarde,
quando fui para Guimarães e ele para o Porto, mantivemos sempre uma grande
amizade, os convívios, estivemos sempre juntos e voltámos a ser colegas de
equipa já no final da nossa carreira, em Espinho a convite do Manuel José e
mais tarde na Sanjoanense
outra vez. O Vermelhinho, além de ter sido um jogador fantástico, é também um
ser humano de excelência, um amigo para toda a vida, não tenho dúvidas nenhumas.
Temos muitas memórias e recordações.
No Vitória de Guimarães a convite de Pedroto
Flávio representou o Vitória de Guimarães entre 1981 e 1984 |
Dois anos na Sanjoanense
bastaram para conseguir atingir o principal escalão português, tendo assinado
pelo Vitória
de Guimarães em 1981. Com que impressão ficou do clube e como foi trabalhar
com o saudoso José Maria Pedroto?
O senhor Pedroto era na altura, o
ícone dos treinadores portugueses, era o melhor treinador, selecionador nacional
e treinador do FC
Porto.
Um dia o senhor Pedroto esteve
presente num jogo da Sanjoanense
em que jogámos em casa contra o Leixões
a duas ou três jornadas para o fim do campeonato e em que, se ganhássemos,
subíamos de divisão.
Empatámos um a um e hipotecámos a
subida, foi uma tristeza enorme para todos nós. Nesse mesmo dia à noite, recebi
uma chamada e disseram-me que o senhor Pedroto queria falar comigo. Eu pensava
que aquilo era para os apanhados, eu colecionava os cromos dos jogadores do Vitória
de Guimarães e nunca me passou pela cabeça ser um dos escolhidos para ir
jogar no Vitória.
O que é certo é que na
terça-feira seguinte fui a Guimarães ter com o mister a um treino. Ia cheio de
vergonha e de medo, o porteiro nem sabia quem eu era, mas lá acabei por assinar
contrato. O José Maria Pedroto é muito importante para mim, pois se não fosse
ele, talvez nunca tivesse chegado à I
Divisão.
O Vitória
de Guimarães tinha e tem uma massa associativa incrível, apesar de serem o
8 ou 80. Isto é: se ganharmos andam connosco ao colo, mas se perdemos estamos
sujeitos a sair pela porta do cavalo. Lá ou se é Vitória
ou Vitória,
naquela altura dificilmente se ouvia falar dos três grandes.
Foi a minha primeira experiência
de profissionalismo e rigor, o senhor Pedroto era um excelente técnico,
conseguia com facilidade desmontar o jogo, era muito forte do ponto de vista
tático e psicológico, esperava por nós de manhã antes do treino à entrada do
balneário e pela nossa cara ele conseguia visualizar se a gente tinha dormido
bem ou se tínhamos dormido a correr. Foi
incrível para mim ter começado na I
Divisão logo com um treinador dessa categoria.
Em Guimarães teve como companheiro de equipa Vítor Damas. Como era ele?
Lá está, era um dos cromos que eu
tanto carinhosamente colecionava, ele na altura tinha vindo de Espanha, depois
de ter sido internacional por Portugal. Era um mito das balizas do futebol
português, uma pessoa espetacular, tinha uma convivência incrível com os
colegas, era muito trabalhador, muito exigente com os jogadores - a cada vez
que a gente errava, ele saía da baliza e vinha direito a nós - e muito ágil e
felino. Apesar de naquela altura já ter os seus 35 anos, com essa idade ainda
conseguiu ir ao Mundial do México em 1986, o que demonstrava a sua capacidade
física e psicológica.
Tenho muitas histórias bonitas
com ele. Eu naquele tempo não tinha carro, andava a tirar a carta e ele tinha
um BMW e dava-me boleia para São João da Madeira e eu fazia questão de o levar
a jantar ao Mutamba, porque era um grande orgulho para mim ver a quantidade de
gente que ficava por ali perto, a ver o grande Vítor Damas, sem dúvida que era
uma vaidade para mim. O grande charuto
era a alcunha dele. Que Deus o tenha, era um grande amigo.
“Foi Pimenta Machado que potenciou o Vitória”
Flávio das Neves elogioso para com Pimenta Machado |
Quando jogou nos vimaranenses,
tinha como presidente o carismático e polémico Pimenta Machado. Como foi a
convivência com ele? Tem alguma história engraçada que nos possa contar?
O senhor Pimenta Machado foi o
primeiro presidente que eu tive no futebol profissional, era uma figura
imponente e exigente, um dinossauro do futebol português. Foi ele que potenciou
o Vitória,
pois naquela altura só tínhamos o complexo da unidade e ele começou a construir
centros de treino.
Eu falava pouco ele, porque ele
era pouco presente. Só sabíamos que ele estava presente quando algo corria mal,
pois a gente já sabia que com ele íamos ter a vida difícil.
Lembro-me de uma história com
ele, em que o meu contrato estava a acabar e, como diziam na altura: “O que
hoje é verdade, amanhã é mentira”. Ele disse que se ia embora e que não estava
lá para o ano a seguir, e quem viesse que fechasse a porta. O que é certo é que
se passaram dez anos e ele ainda lá estava.
O Vitória
pagava religiosamente os salários, nunca falhava com nada e era um clube
altamente cumpridor. Grande presidente!
No seu terceiro ano em Guimarães, em 1983-84, fez a estreia nas
competições europeias. Qual foi a sentimento?
Nesse ano fomos jogar a Birmingham
com o Aston Villa para a Taça
UEFA. Eles tinham sido campeões europeus dois anos antes. Nós tínhamos
ganho 1-0 em Guimarães e na segunda-mão fomos ao Villa Park e logo no primeiro
minuto já perdíamos por 1-0. Eu lembro-me que durante o aquecimento, tive que
colocar algodão nos ouvidos porque nem conseguia falar com os meus colegas,
existia muita pressão e barulho. Fomos goleados por 5-0, apesar de eu ter feito
um excelente jogo naquele dia. O Silvino, que era o nosso guarda-redes acabou
por sair infeliz dessa partida. Fomos eliminados por uma grande equipa, mas ter
jogado no Villa Park foi um momento espetacular.
“Quem joga e passa pela Académica dificilmente a esquecerá”
Flávio das Neves jogou na Académica entre 1984 e 1987 |
Seguiu-se a Académica.
Como foi representar os estudantes?
Toda a gente na altura falava da Académica
como um clube diferente. Quando cheguei lá apercebi-me mesmo disso. Quem joga e
passa pela Académica
dificilmente a esquecerá, não tinha muito a haver com o rigor nem com a
disciplina, muito menos com o grau de profissionalismo a que estava habituado
em Guimarães, mas com o carinho, o ambiente da própria cidade, da universidade,
tudo o que rodeava o meio estudantil, foi uma coisa incrível. Aquilo
entranha-se no corpo e eu passei lá três anos maravilhosos, obtivemos a melhor
classificação depois dos tempos áureos deles e tenho o meu nome e fotografias
nos quadros da sede do clube.
Adorei trabalhar na Académica,
durante as três épocas em que lá estive, como é que é possível um clube no
sexto e sétimo lugar, conseguir vender-me ao Benfica
e enviar dois atletas para a seleção nacional?
No meu tempo existiam oito ou
nove jogadores universitários, a Académica
permitia que eles estudassem e treinassem em simultâneo.
Lembro-me que fizeram de tudo
para eu concluir matemática, para conseguir entrar na faculdade, mas
arrependo-me de não o ter feito. Eles queriam muito formar-nos e preparar-nos
para a vida. Curiosamente, quando vim embora, a Académica
desceu.
Na Académica
teve Jesualdo Ferreira como treinador. O que achou dos seus métodos de
trabalho? Já implementava o seu famoso 4x3x3? Tem alguma história curiosa com
ele?
O professor Jesualdo devia ter
uns 37 anos na altura, era um jovem treinador, que vinha do Instituto Superior
de Educação Física, de onde saíram muitos treinadores nessa altura. Era o
início da emancipação dos treinadores portugueses e ele tomou conta da Académica
na I
Divisão, tinha trabalhado na Federação e tinha treinado o Torreense,
de onde trouxe três ou quatro jogadores.
Os métodos de treino eram
totalmente diferentes do que eu estava habituado a trabalhar e eu comecei a
beber daquilo. Os exercícios de treino, muitos deles, já passaram 20 e tal anos,
mas para mim continuam a ser fundamentais para o processo de treino. Os meus
jogadores são conhecedores daquilo que eu estou a falar: a criação da
superioridade numérica nos corredores, dois contra um nos corredores, bola
dentro e abrir para fora e cair nas costas, uns treinos espetaculares.
O processo de jogo do professor
era 4x3x3, tudo bem trabalhado. A verdade é que à sexta jornada só tínhamos
vencido um único jogo, quando perdemos com o Vizela
em casa. A direção despediu o professor Jesualdo e o treinador adjunto Vítor
Manuel assumiu o cargo, treinava a Académica
durante o dia e o Anadia à noite.
O Vítor Manuel continuou a seguir
exatamente o mesmo tipo de treino que o professor, as mesmas ideias e a mesma metodologia
e nós estivemos quinzes jogos consecutivos sem perder. Foi incrível o que nós
fizemos. Uma equipa que estava para descer de Divisão acabou por ser muito
valorizada no final.
“Nunca ganhei tanto dinheiro no futebol como no Vitória de Setúbal”
Flávio das Neves no Vitória sadino entre 1987 e 1990 |
No verão de 1987 transferiu-se para o Vitória
de Setúbal, que na altura regressava à I
Divisão. O que mais o impressionou no clube?
O Vitória estava num processo de
reformulação do plantel, com o treinador Malcolm Allison e o presidente Fernando
Oliveira, que me contrataram.
É um clube com uma massa
associativa fantástica, o estádio tinha sempre 20 mil pessoas a assistir aos
jogos, os sócios têm uma ligação incrível ao clube, permaneciam em redor do
estádio antes dos treinos, era fantástico... Não faltava nada no Vitória e até
posso confessar que foram os anos em que ganhei mais dinheiro no futebol,
tínhamos prémios absurdos para a época, eu nem mexia no meu ordenado [risos].
Joguei ao lado dos melhores
jogadores do futebol português daquela altura, pois muitos jogadores saíam dos
três grandes, porque o Vitória
pagava muito e bem. Se comparar com a realidade atual do clube para aqueles
tempos eu nem me acredito.
Eu parecia que estava sempre de
férias, a cidade de Setúbal é incrível, tem praias, a serra da Arrábida, Troia,
Figueirinha, Galapos, tem bom peixe, a minha família ia para lá de férias, uma
semana uns, outra semana outros, era espetacular.
Quando vou passar férias tenho
que passar sempre por Setúbal, fiz lá muitas amizades, o clube representa muito
para mim. Todos os anos vou assistir a pelo menos um jogo do Vitória, sinto-me
muito acarinhado.
No Bonfim foi orientado por Malcolm Alisson e teve como companheiros de
equipa algumas figuras como Mészáros, Eurico Gomes, Jordão e Manuel
Fernandes. Como era a convivência no balneário com esses craques? Tem
alguma história engraçada com eles que nos possa contar?
Tenho algumas, mas são proibidas [risos].
Eles eram altamente profissionais, trabalhavam muito com um dos fenómenos da
altura, que era o preparador físico Roger Spry, que nos obrigava a jogar de os
olhos pintados [risos].
Mantivemos sempre uma relação de
amizade e de respeito, eu bebia muito da experiência deles, mas o que mais
admirava era sem dúvida o grau de profissionalismo de cada um.
Recordo-me também dos almoços a
seguir aos treinos, o Malcolm Allison marcava os treinos para as 11 horas e
depois às 13.00 íamos almoçar um peixinho. Lembro-me do último jogo do Jordão
em casa frente ao Leixões,
o Manuel
Fernandes já era o treinador. O Jordão já tinha feito um golo nesse jogo e
então foi substituído e eu nunca vi tal coisa: o árbitro parou o jogo para que
todos lhe prestassem uma homenagem.
“Maior tristeza da minha carreira foi não ter subido o Sp. Espinho à I Divisão”
Flávio das Neves nos tempos da Sanjoanense |
Em 1990 regressou à região de Aveiro pela porta do Sp. Espinho. Como é
que surgiu essa hipótese?
Foi no ano de estreia da II
Liga, quem me convidou foi o Manuel José. Ele tinha sido meu treinador em
Guimarães e o Sp. Espinho ia realizar um grande investimento na tentativa de
formar uma grande equipa para conseguir a subida.
Lembro-me do Manuel José ter ido
a São João da Madeira, a casa do António Sousa, para eu e o Vermelhinho
assinarmos contrato. O contrato era muito bom para a altura e lá fomos nós para
Espinho para o ajudar. Tínhamos uma
grande equipa e eles pagavam-nos religiosamente.
Começámos mal a época, e dos poucos
pontos que fizemos ainda perdemos mais quatro na secretaria, porque o clube
inscreveu mal os jogadores. Depois fomos recuperando e conseguimos andar uns 15
jogos sem perder e, a cinco jogos do fim, estávamos no terceiro lugar, que dava
para subir. Eu estava altamente motivado para ajudar o mister Manuel, eu e o
Vermelhinho, lutámos como cães para voltarmos a colocar o clube na I
Divisão. Acontece que, nos últimos três jogos, empatámos e perdemos as
hipóteses de subir de divisão. Inacreditavelmente, nos dois últimos jogos
empatámos 0-0, mas nunca lutei nem sofri tanto num jogo para ganhar. Posso
dizer que eu e o Vermelhinho naquela estrada entre Espinho e Rio Meão parámos
num bar e bebemos umas cinco ou seis cervejas, estávamos completamente
desanimados, a chorar compulsivamente, porque queríamos ajudar o Sp. Espinho, a
direção que era espetacular e principalmente o Manuel José. Para mim foi a
maior tristeza da minha carreira enquanto jogador não ter subido o clube, com
todas as condições que nos ofereceram. Felizmente foram campeões no ano a
seguir com o Quinito. Fiquei mais feliz.
A época de 1991-92 ficou marcada pelo seu regresso à Sanjoanense.
Nesta segunda passagem pelo clube teve como companheiro de equipa António
Sousa, já em fim de carreira. Como era ele?
O António Sousa é um dos grandes
nomes do futebol português, com um currículo extraordinário, um grande jogador,
quer ao serviço do FC
Porto e Sporting
quer da seleção nacional, era um atleta exemplar, íntegro, introvertido, era o
nosso capitão na altura. Entretanto, o nosso treinador Gabriel foi embora e o
António assumiu o comando da equipa. Não
foi fácil para nós, porque estivemos na iminência de descer de divisão, mas
felizmente conseguimos safar a Sanjoanense.
Após encerrar a carreira de jogador, iniciou a de treinador. Como
técnico tem trabalhado sobretudo nos campeonatos não profissionais. Que balanço
faz da sua carreira?
A minha carreira enquanto
treinador é um motivo de orgulho, porque olho para trás, treino penso que há 25
anos, e trabalhei sempre, raramente passei um ano sem trabalhar. Posso passar
quatro meses sim, mas não tenho empresário, não tenho ninguém a trabalhar para
mim, são eles que me têm que telefonar para eu ir. Em todos os clubes que
representei nunca falhei para com eles. Geralmente, quando os clubes estão
aflitos, chamam o Flávio e as equipas safam-se sempre. É curioso que a maior
parte dos clubes por onde passei, passados uns três ou quatro anos, estão-me a
chamar outra vez para os ir treinar.
Só no Campeonato
de Portugal tenho uns 400 e tal jogos, fizeram um estudo relativamente a
isso, e a maior parte dos clubes que eu treinei lutavam para não descer e eu
tenho 25% de derrotas, mais de 200 vitórias, 100 empates e 89 derrotas, é algo
assinalável. Tenho a certeza que se não iniciar brevemente a trabalhar nestes
próximos dias, lá para setembro, outubro ou novembro já me chamam para eu ir. Como
é que é possível um treinador apresentar resultados e trabalho e não ter tido
as mesmas oportunidades que outros?
O que julga ter faltado para ter tido apenas uma experiência nas ligas
profissionais, quando orientou a Oliveirense
na II
Liga em 2001-02?
Acho que faltou saber vender a
minha imagem, saber escolher bem os passos que havia de dar para a minha
carreira. Eu estive três anos na Oliveirense,
realizei um bom trabalho, apesar de ter sido o único clube que desci na minha
carreira. Depois não soube gerir muito bem, mal era convidado para algum
projeto aceitava logo e safava muito clubes. Acabei por, se calhar, ficar
conhecido como o treinador que salvava as equipas.
“Ainda hoje, no Ribeirão, me dizem que fui o único que acreditou no Pizzi”
Quando cheguei a Ribeirão era o
quarto treinador naquela época, iam disputar a fase de manutenção no Campeonato
de Portugal e tinham dez jogadores emprestados pelo Sp.
Braga. A direção falou comigo e disse: “oh mister, temos aqui estes dez
jogadores que estão emprestados pelo Sp.
Braga, mas esqueça isso, é tudo lenha queimada, são uns brinca na areia, estiveram
suspensos um mês devido às noitadas”. E para um recém-chegado como eu, estarem-me
a pintar um cenário daqueles...
Tinha ao meu dispor um plantel de
30 jogadores, 20 mais velhos e esses tais dez miúdos. Foi muito complicado para
mim trabalhar com tantos jogadores, fiz três equipas de dez jogadores para os
conseguir observar e cheguei a confidenciar com o meu filho que tinham lá dois
ou três miúdos que jogam muito. E ele dizia: “oh pai, lá estás tu, tens a mania.”
[risos]
Quem trabalhou comigo sabe que eu
gosto de trabalhar os movimentos de bola dentro, passa por fora, vai nas
costas, joga dentro, e o Pizzi tanto jogava por dentro como por fora, ele
comigo jogava a ala, mas depois também o passava para dez, que é aquilo que ele
faz agora no Benfica.
Tivemos jogo no domingo, em
Ribeira Brava, e convoquei o Pizzi. Na altura diziam que eu estava tolo, mas eu
só dizia ao Pizzi para ele confiar em mim, porque ele jogava mais do que ele
julgava. A dada altura, durante o jogo, chamei-o e disse para colocar algodão
nos ouvidos para jogar para mim. O que é certo é que estávamos a perder e ele
virou aquele jogo. Conclusão: ele começou a partir aquilo tudo.
Mais para o fim da época, já
tínhamos a permanência praticamente garantida e, eu, numa palestra, disse que
ia safar o Ribeirão e que depois ia embora e que ia ver o Pizzi muito em breve
jogar na I
Divisão.
Passados uns três anos, o Pizzi
foi para o Paços
de Ferreira, em dezembro ainda não estava a trabalhar e fui ver um jogo
dele com o FC
Porto. O FC
Porto vencia por 1-0, até que entrou o Pizzi e pumba, bola lá para dentro.
Tinha empatado o jogo, em estreia absoluta no Estádio do Dragão. Lembro-me de
ter ficado emocionado nesse dia.
Mal acabou o jogo, ligou para
mim, e disse: “Paizinho, estás aí no Mutamba? Viste o jogo? Isto é para ti,
obrigado por tudo o que fizeste por mim...Bem dizias tu que eu um dia conseguia
chegar lá...”
Ainda hoje em dia, quando vou a
Ribeirão, toda a gente me diz que foi o único que acreditou no Pizzi [risos].
Flávio com o filho Rúben Neves |
Três épocas depois treinou o seu filho Rúben
no Cinfães. Como conciliou o papel de pai com o de treinador?
Eu não me estava a ver treinar o
meu filho, nunca tinha pensado nessa hipótese. O Rúben
estava na Sanjoanense
e tinha tido uma lesão na parte final da época e então eu levava-o comigo para
Cinfães para ele treinar, para perceber se estava tudo bem com ele. Os
diretores do Cinfães perguntaram quem era aquele miúdo e eu não quis dizer que
era o meu filho, disse-lhes que tinha sido um miúdo conhecido lá de São João
que estava a recuperar de lesão, mas eles insistiam em dizer: “o gajo joga
bem”. O Rúben
andou a treinar uns quatro dias seguidos e acabei por lhes contar que era o meu
filho, e aí eles quiseram que ele fosse para lá jogar. Tivemos uma conversa,
apresentei-lhe essa hipótese e ele disse: ir para Cinfães contigo? Eu disse que
também não era muito de acordo com isso, mas era uma decisão que só teria que
partir dele. Bem, acabou por querer ir comigo, mas disse-lhe que tínhamos que
ter um estofo psicológico muito grande.
Na pré-época, já tínhamos
realizado uns três ou quatro jogos e nunca tinha colocado o meu filho a
titular, entrava só no decorrer do jogo, até que em Santo Tirso, estávamos a
perder 1-0, meti-o e virámos para 1-2. O presidente aí disse que não sabia do
que eu estava à espera para pôr o Rúben
a jogar mais tempo, que ele era melhor que os outros. Fiquei contente, claro,
por ele se ter conseguido impor por ele próprio.
Na semana em que íamos fazer o
primeiro jogo oficial da época, perguntei se ele achava se seria titular. Ele
disse: “eu acho que sim, pelo menos no clube toda a gente diz que sou eu e mais
dez” [risos].
Dizia-lhe muitas vezes para ser
ele próprio, e para nunca me contar nada que acontecesse no balneário, só assim
é que conseguíamos estabelecer uma boa relação entre nós.
Em 2015-16 comandou André Pereira na Sanjoanense.
Como viu o salto do avançado para o FC
Porto e o que tem visto o trajeto dele no futebol profissional?
O André, na altura em que eu
cheguei à Sanjoanense,
ele tinha a concorrência do Ronan David [atualmente no Rio
Ave], mas depois o Ronan saiu em dezembro e o André começou a ter mais
oportunidades...
Naquela altura, o mister Abel
Ferreira marcou uns três ou quatro treinos connosco, porque queria levar o
André de qualquer maneira. A dada altura o Mota e o Vargas lá foram com o André
a Braga no inicio da época seguinte, mas quando chegaram a Braga tiveram que
fazer marcha-atrás, porque o Alexandre Pinto da Costa ligou-lhes para eles irem
para o Porto para assinar com o FC
Porto.
O André é um jogador muito
rápido, muito forte a atacar a profundidade, com muita espontaneidade no
remate, forte a antecipar-se de cabeça. Ele estava preparado, tinha muito
potencial.
Fez aquele trabalho na equipa B do
FC
Porto, fez um excelente trabalho no Vitória
de Setúbal, aqueles minutos na equipa principal do FC
Porto também foram importantes e eu até lhe dizia que estava num bom
caminho.
O que aconteceu depois foi aquela
ida para Guimarães e depois as lesões que ele foi tendo, aquela época em
Espanha no Saragoça, onde esteve muito tempo parado, condicionando assim a sua
evolução.
Naqueles primeiros 18 meses após
a saída da Sanjoanense,
ele estava num bom caminho, era um avançado que encaixava muito bem, até para
jogar na ideia do 4x4x2 do Sérgio Conceição, para atacar a profundidade, estava
a evoluir e era muito jovem.
Espero que ele consiga recuperar
de todas estas lesões que sofreu, mas claro que já será um grande revês na
carreira dele.
Já sabe que clube irá treinar na próxima temporada?
Estão-me a chegar alguns zunzuns e
parece-me que A ou B vêm falar comigo, mas na verdade é que não tenho nada
decidido neste momento. Eu penso que vou treinar, mas esta é uma altura de
pré-época que nos dá muito trabalho, claro que gostaria de começar muito em
breve.
Tem acompanhado a Sanjoanense?
O que tem achado das últimas épocas do clube?
A Sanjoanense,
nestes últimos anos, desportivamente tem morrido na praia. Não tem alcançado a
subida divisão, falta sempre um pormenor. Esta época podia ter subido à Liga 3,
bastava um golo.
O clube neste momento está a ser
gerido por uma SAD, com pessoas honestas, que cumprem. Já trabalhei com eles e
sei bem o rigor que têm, o valor financeiro está lá e isso é meio caminho andado
aliviando muito a Sanjoanense
como clube, permitindo libertar verbas para as outras modalidades.
O relvado encontra-se degradado,
sendo muito difícil jogar lá, principalmente no inverno. As pessoas estão a
colaborar pouco, aqui em São João, o público só acompanha mais o clube se a
equipa ganhar. É só pena que as condições físicas do clube estejam obsoletas.
Propomos-lhe um desafio. Elabore um onze ideal de jogadores com os
quais tenha jogado.
É muito difícil, mas o meu onze
ideal seria:
GR- Vítor Damas;
DD- Bandeirinha;
DC- Eurico e Dito;
DE- Gregório Freixo;
MC- Jaime Pacheco, Carlos Xavier,
Jordão e Manuel
Fernandes;
A- Ribeiro (Académica)
e Vermelhinho;
Flávio das Neves orientou Cinfães em três ocasiões |
Quais foram os treinadores e jogadores que mais o marcaram?
Enquanto jogador os treinadores
que me marcaram mais foram José Maria Pedroto (sem ele não teria chegado à I
Divisão); Manuel José (por ser um profissional de uma personalidade muito
forte e vincada, sabia o que queria para as equipas e foi sem dúvida um amigo
que ganhei para vida); Jesualdo Ferreira (pela metodologia de trabalho e pela
capacidade de organização, aprendi muito com ele), Vítor Manuel (pelo apoio e
pela confiança que depositou em mim) e por último o Manuel
Fernandes (porque foi o treinador com quem fiz a melhor época da minha
carreira, onde nessa época consegui o prémio de melhor defesa-esquerdo do ano).
Os jogadores que mais me marcaram
foram: o Kikas que foi central do Sporting
(foi um dos melhores colegas que tive, criei uma ligação muito forte com ele);
Veloso (foi o meu companheiro de infância e fez de tudo para eu ir para o Benfica,
onde na altura ele era o capitão); Rui Correia (é da minha terra, cresceu
praticamente comigo e é o padrinho da minha filha) e Abreu (capitão do Vitória
de Guimarães, que me ajudou muito no meu primeiro ano de Vitória).
Enquanto treinador houve
jogadores que me marcaram muito: o Jó, Pizzi, Héldon e Sabino Mendes.
Mas o Jó para mim era um atleta
impressionante, nem sei como não conseguiu jogar na I
Divisão, decidia um jogo a qualquer momento. Aliás, ele ganhava jogos
sozinho, mas também só o fez comigo, o que é de certa forma surpreendente.
Recentemente fizeram um trabalho
comigo, em que contabilizaram 68 ou 69 jogadores que passaram pelas minhas mãos
e que chegaram à I
Divisão.
Além do futebol, tem outra atividade?
Não. É só futebol. Quando não
estou a treinar, estou a ler e a estudar, para adquirir cada vez mais
informação. Sou um dos treinadores que há mais anos está a treinar no Campeonato
de Portugal.
Entrevista realizada por Rui Coelho
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