segunda-feira, 13 de abril de 2020

Hugo Marques: “Foi injusto não ter estado no CAN 2019. Os melhores são para estar lá”

Hugo Marques soma quatro internacionalizações por Angola
A viver a melhor fase da carreira, Hugo Marques é um dos pilares de um Farense que está muito bem posicionado para subir à I Liga. Aos 34 anos, remeteu para o banco de suplentes o guarda-redes internacional português Daniel Fernandes nos leões de Faro.

Para trás fica a infância difícil no norte de Portugal, a aventura como jogador de campo no futsal,  um percurso nas seleções jovens portuguesas, as memórias dos treinos às ordens de José Mourinho no FC Porto e orgulho em ter representado o país da mãe, Angola, numa grande competição internacional, mantendo a porta aberta aos Palancas Negras.

Numa entrevista profunda dividida em duas partes – esta é a primeira, pode ler a segunda AQUI -, o veterano guardião internacional angolano revisita uma carreira que vive agora uma das melhores fases.


ROMILSON TEIXEIRA - Quem é Hugo Marques? Onde nasceu e cresceu e como foi a sua Infância?
HUGO MARQUES - Nasci em Fão, freguesia de Esposende, distrito de Braga, e vivi lá até aos seis anos. Depois fui para a Póvoa de Varzim juntamente com a minha mãe. Defino-me como um lutador. A minha infância não foi fácil. pois passei por algumas dificuldades. Vi-me privado de conviver com os meus irmãos durante algum tempo e não tinha estabilidade emocional em casa. Houve algumas vezes em que não sabia o que ia comer na refeição a seguir e não sabia se estaria na mesma casa mais de um mês. Depois encontrei o futebol, a minha mãe e o meu pai ganharam outra estabilidade emocional e económica, pude conviver mais com os meus irmãos e foi aí que conheci pessoas muito importantes no meu crescimento. Convivi com muitas famílias da Póvoa e orgulho-me de hoje em dia ainda estar com elas de chamar de família a algumas delas. Tenho amigos de infância que são como irmãos.

Quais foram as pessoas que mais o encorajaram a superar essas dificuldades? O que elas significam para si?
As minhas irmãs foram muito fortes. Tenho imenso orgulho delas. Depois numa fase mais avançada fui tendo apoio dos meus amigos e pessoas que gostavam de mim. Estarei para sempre grato a elas. A estabilidade veio com o início de namoro com a minha atual mulher e ao conhecer os meus sogros, aos quais endereço um muito obrigado pelo seu amor e acolhimento na casa deles, não esquecendo outra família da minha mulher, como a irmã e marido dela. Essas pessoas significam tudo para mim. Um enorme abraço aos meus irmãos Filipe Santos, Guillaume de Faria e Sandra Santos, irmãos de vida.


“Comecei como ponta de lança, mas não tinha muito jeito jogar na frente”


Guarda-redes Hugo Marques nas camadas jovens do Varzim
Disse que o futebol foi importante para a sua estabilidade. Com que idade começou a jogar futebol? Sempre foi guarda-redes?
Sim, foi a melhor coisa que me aconteceu na vida. Comecei a jogar nas ruas desde muito pequeno, depois fui para o futsal. Comecei como ponta de lança, fiz alguns golos, mas não tinha muito jeito para estar lá na frente. Até que um dia faltou um guarda redes e já podem imaginar o que aconteceu… depois fui chamado às captações do Varzim, clube pelo que tenho imensa estima, e aí começou a verdadeira aventura na baliza.

Com que idade entrou e saiu do Varzim e como descreve a sua passagem pela formação dos poveiros?
Entrei aos nove anos e sai aos 16. Foi uma passagem muito boa, recheada de grandes momentos e de amizades que até ainda hoje as tenho. Foi-me oferecido um contrato profissional, que faria de mim o mais jovem de sempre assinar pelo clube. Cresci com garra, amor à camisola e orgulho. Guardarei esses momentos para sempre.

Depois do Varzim veio o FC Porto. Como surgiu a possibilidade de representar os dragões e o que lhe passou pela cabeça quando soube do interesse?
Recebi um telefonema de um diretor do FC Porto conhecido por recrutar jovens talentos para os dragões. Na primeira chamada fiquei sem bateria e até pensei que fosse brincadeira, mesmo sabendo pelo meu treinador [Américo Araújo] que andavam a seguir o meu trajeto. Na segunda chamada fiquei super feliz, era o realizar de um sonho, mas ao mesmo tempo tinha de decidir entre jogar a segunda fase do nacional dos juvenis e assinar contrato profissional pelo Varzim ou assinar pelo FC Porto. Decidi arriscar e ir para um projeto novo, diferente e aliciante. Poderia ser o menino de ouro do Varzim e da Póvoa, mas preferi ir em busca de um sonho maior.

Passou várias épocas no FC Porto. Como foi a adaptação ao clube? Quais foram as maiores dificuldades que enfrentou?
No início foi um pouco difícil a adaptação entre a vida escolar, amigos e treinos. Ia muito cedo para a escola, saía a correr para ir para o Porto e quando voltava do treino chegava muito tarde a casa. Depois correu tudo muito melhor. Fui campeão nacional no primeiro ano no FC Porto e depois fui chamado para a seleção dos sub-17 de Portugal para o Mundial.

Nesse Campeonato do Mundo de sub-17, em 2003, representou Portugal ao lado de jogadores como João Moutinho, Miguel Veloso, Vieirinha e Manuel Fernandes. Como foi essa experiência e o que representou para si?
Foi um dos momentos altos da minha carreira. Joguei ao lado de campeões europeus de sub-17 que depois se sagraram campeões europeus de seniores, que estão na história do futebol mundial. Foi uma grande experiência.


Mourinho foi o primeiro a chamar-me ao plantel sénior do FC Porto”


Hugo Marques nos juniores do FC Porto
No FC Porto lidou com grandes treinadores, entre os quais José Mourinho
Lidei com grandes treinadores felizmente… José Guilherme e Ilídio Vale (adjuntos de Carlos Queiroz na seleção portuguesa), André Vilas Boas, Domingos Paciência, Co Adriaanse, Víctor Fernández, Aloísio (foi como pai para mim) e o melhor de todos os tempos para mim: José Mourinho. Na altura já era diferente e especial, foi o primeiro a chamar-me ao plantel sénior e tive a felicidade de coincidir com a conquista da Liga dos Campeões em 2004. Vivi tudo de perto. Inesquecível! Estive com o plantel nesse mês de consagração.

Esteve entre a comitiva que viajou para Gelsenkirchen?
Não estive entre os convocados, mas estive em todos os treinos desse mês até à partida da equipa para Alemanha. Foi algo único. Ninguém diria que o FC Porto, que tinha ganho a Taça UEFA, iria ganhar a Liga dos Campeões no ano a seguir, mas eles conseguiram. Acho difícil uma equipa portuguesa fazer isso novamente na história do futebol.

Como define José Mourinho? Tem alguma história ou situação que viveu com ele que queira partilhar?
Defino-o como perfeccionista e muito virado para a parte psicológica do jogador, o que acho que faz muita diferença. Lembro-me de um treino em que estávamos a treinar no outro lado do centro de estágios, no campo n.º 3, e ele saiu disparado do campo n.º 1, onde estava com os jogadores que iam jogar para o campeonato contra o Rio Ave. Veio todo irritado porque viu que os jogadores não estavam a dar o máximo. Resumindo: o treino mudou logo de velocidade e de qualidade, o homem tinha muita moral.

Sentiu que ao sair do FC Porto para o União de Lamas deu um passo à trás? O que motivou a sua saída dos dragões?
Na altura a equipa B acabou e eles emprestaram os quatro jogadores que ainda tinham contrato, eu era um deles. Fui chamado ao gabinete do presidente no qual fui comunicado que ia ser emprestado, o grande Pinto da Costa disse-me que ia ganhar experiência para poder voltar. Pensei que ia para o Trofense na altura pois era o clube mais interessado, mas acabei no União de Lamas. Era um bom clube, com um grupo fantástico do qual só tenho boas recordações e agora até tenho um colega dessa altura que joga comigo no Farense - já não é só um colega, é um amigo -, o Filipe Melo. Joguei pouco e pedi para sair, na altura o treinador [Pedro Martins, atual treinador do Olympiakos] não me queria deixar sair, mas lá consegui e fui para o Vila Meã, onde estava o Aloísio. Foi um pequeno passo em frente.
Quando saí do Vila Meã, onde consegui jogar mais do que o União de Lamas, fui para o Gil Vicente, que tinha um projeto de subida. Assinei por quatro anos e fiquei com uma cláusula louca de um milhão de euros. Acabei essa época a titular, joguei os últimos oito jogos e a lutar para subir, pois tinha 21 anos, era jovem e foi muito bom. No fim da época saiu o treinador, saem os colegas e amigos para outros clubes e fiquei um pouco desamparado. Tinha tido um dos melhores balneários a nível profissional a par do Lamas e do Vila Meã, tinha tido um dos melhores treinadores guarda-redes do mundo [Hugo Oliveira, que foi campeão pelo Benfica e recentemente esteve no Everton com Marco Silva] e senti isso. Chegou um novo treinador, novos colegas e fui logo posto de parte porque não ia ser aposta desse novo treinador. Pedi novamente para ser emprestado e ainda cheguei a estar cinco dias na China.

Hugo Marques vive uma das melhores fases da carreira aos 34 anos
Voltei e fui para o Tirsense. Joguei a primeira volta toda a titular, sofri poucos golos e de um momento para o outro um treinador, que pensava que era mais importante outro tipo de coisas do que treinar bem, tirou-me da baliza.
Acabou essa época para mim e voltei ao Gil Vicente, pelo qual tinha mais dois anos de contrato e continuava a ser uma promessa. Nunca desisti. Veio outra época em que joguei pouco, mas mesmo assim adorei estar no Gil com o grupo de trabalho e com o mister Rui Quinta. Queriam renovar, mas eu pedi para rescindir. Fui para Angola.

Passou cinco épocas em Angola, três das quais ao serviço do Kabuscorp. Como foi essa primeira experiência no futebol angolano? Quais foram as principais dificuldades que enfrentou?
A primeira dificuldade foi deixar a família para trás. Foi muito duro pois tinha sido pai há pouco tempo e a minha mulher [Filipa] estava à espera da minha filha Leonor e não podia viajar comigo. Depois, a adaptação ao país foi um pouco difícil em certas coisas e fáceis em outras porque sempre tive o espírito guerreiro e aventureiro. Ia para um campeonato desconhecido, para um clube desconhecido e para um continente onde nunca tinha estado. Sabia que o clube tinha um presidente poderoso, uma claque e adeptos fervorosos e um desejo enorme de ser um dos grandes de Angola. E foi aí que começou a aventura na terra da minha mãe.


Girabola é muito duro e muito desgastante a todos os níveis”


Que significado teve conhecer o país da sua mãe? Essa experiência foi decisiva para que optasse por jogar por Angola depois de já ter representado às seleções jovens de Portugal?
Quando fui para Angola o objetivo era chegar à seleção dos Palancas. Mas claro que primeiro teria que provar o meu valor e dar o meu melhor num campeonato muito competitivo. Para um guarda-redes, o Girabola é muito duro e muito desgastante a todos os níveis. Mas o meu primeiro ano correu bem, fui titularíssimo – só não fiz um jogo -, vice-campeão num clube que nunca tinha ficado nos três primeiros e chamado ao CAN 2012, depois de ter ganho o prémio de melhor guarda-redes de 2011 do Girabola. Tive o prazer de conhecer a terra da minha mãe e também o prazer de conhecer família espetacular que tenho em Angola. Um beijo enorme para a família do Dundo, para o pessoal do hotel onde fiquei instalado durante o primeiro ano e para todos que me apoiaram.

Hugo Marques defendeu a baliza do Kabuscorp em 2011, 2012 e 2015
Como foi a experiência do CAN 2012?
Foi um realizar de mais um sonho. Queria muito ser internacional, tinha a possibilidade de representar Cabo Verde, Moçambique e Angola e optei pela seleção pela qual tinha mais carinho e pela que tinha lutado por mim. Tudo começou numa visita à casa do nosso antigo capitão André Macanga, que numa conversa me convenceu que seria muito bom para o meu futuro e assim o foi. Tive o privilégio de estar ao lado da melhor geração de Angola até ao momento, ao lado de um grande capitão e ser humano, o Kali. Foi a minha segunda grande competição, e isso é algo que não se obtém facilmente. Fui um dos escolhidos para estar no CAN e, curiosamente, depois desse CAN deixei de ser chamado durante algum tempo.


“Sinto que posso acrescentar algo à seleção angolana


Sentiu-se posto de lado por não ter sido chamado ao CAN 2019, mesmo tendo feito uma boa época e com bons números no Farense, na II Liga portuguesa? Aos 34 anos, ainda sonha voltar a ser chamado à seleção depois de sete anos de ausência?
Sim, achei que foi algo injusto porque em qualquer seleção os melhores são para estar lá, agora se são para jogar ou não isso cabe ao selecionador. Tinha números muito fortes do meu lado e nem uma SMS recebi da parte da federação. Agora, aos 34 anos, sinto que posso acrescentar algo à seleção tal como tenho acrescentado ao meu clube. Tenho muita mais experiência a lidar com a pressão depois de ter jogado no Kabuscorp, 1º de Agosto e agora no Farense. É algo que já não me faz confusão, já não fazia antes, porque chegar e jogar de caras no Kabuscorp com aquela massa adepta e ser o melhor guarda-redes do campeonato demonstra a força psicológica que tenho.

O que acha do nível de organização da Federação Angolana de Futebol (FAF)? O que acha que deve ser mudado urgentemente?
Sei que não é fácil querer mudar do dia para a noite ou querer melhorar algo que vem de trás, porque se calhar até os antigos projetos estão inacabados. Sei que agora trabalham de uma maneira diferente, estão mais atentos. Há pessoal mais atento na comunicação social que também pode ajudar, tudo um pouco é importante.


Entrevista realizada por Romilson Teixeira




















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