O romântico de Sines que trocou o dinheiro pela sua gente. Quem conhece a história de Márcio Madeira?
Márcio Madeira despediu-se das ligas profissionais aos 29 anos
Um dos últimos românticos do
futebol português, um jogador que, aos 29 anos, trocou a II
Liga pela II Divisão Distrital, abdicando do salário de futebolista profissional
em prol do conforto de família e amigos que só Sines e o Vasco
da Gama podiam dar.
Filho do antigo
avançado Vítor Madeira, que passou por Vitória de Setúbal, Estoril e Marítimo,
Márcio Madeira nasceu a 19 de agosto de 1985 na cidade portuária do litoral
alentejano. Médio ofensivo/extremo canhoto, começou por jogar futebol nas
camadas jovens do Vasco
da Gama, mas no segundo ano de juvenil rumou ao Benfica,
onde o irmão
mais velho Vítor atuava na equipa B, e concluiu a formação no Vitória
de Setúbal. “Aquele tempo [do Benfica]
não tem nada a ver com o atual, eu não fui para o Seixal, fui para a Luz
antiga onde o centro de estágios era debaixo da bancada. É fácil de resumir
essa parte da minha vida: eu era um dos melhores aqui em Sines e quando fui
para o Benfica
era um dos piores do campeonato nacional. Estes meios mais pequenos depois
enfrentam uma realidade que não tem nada a ver com a sua terra. Eu aqui era o
maior e lá era igual aos outros. O meu pé esquerdo lá era igual aos outros (…) Depois
no Vitória
o campeonato era diferente. Fizemos um campeonato fantástico, fomos à terceira
fase, feito que o clube só tinha conseguido três vezes. Eliminámos o Sporting,
a geração do Ronaldo,
em Alcochete, numa altura em que o Sporting
dava um pontapé na relva e saía um jogador feito”, contou ao Maisfutebol
em julho de 2020. Quando transitou para sénior não
encontrou espaço no Bonfim
e voltou ao Vasco
da Gama, destacando-se imediatamente. Com onze golos em 34 jogos na II
Divisão B em 2004-05, foi (de longe) o melhor marcador de uma equipa que viria
a não conseguir impedir a descida à III Divisão. Seguiram-se passagens pelos
açorianos de União Micaelense (2005-06) e Operário
(2006 a 2008), também na II B, antes de dois anos no Juventude
de Évora, tendo ajudado o clube
alentejano a subir à II Divisão B em 2010. Os bons desempenhos ao serviço do
emblema
eborense, nomeadamente os 15 golos que apontou em 2009-10, valeram-lhe um
salto gigante para o Nacional
da Madeira, na altura uma equipa que ficava habitualmente na primeira
metade da tabela da I
Liga.
Acabou por atuar apenas por 13
vezes com a camisola alvinegra no espaço de dois anos, tendo apontado um golo.
Soube a consolo ter jogado na Liga
Europa e numa meia-final da Taça
de Portugal. A culpa de não ter tido mais sucesso individual na Choupana,
admite, foi da pesada concorrência de Edgar Costa, Candeias, Mateus e Rondón: “Estes
quatro fatores impediram que a minha afirmação no Nacional
fosse conseguida. Basta ver onde é que eles ainda jogam. Era uma concorrência
muito boa, com mais qualidade do que eu. Aprendi e bebi o máximo que pude
desses dois anos. Para a qualidade que eles apresentaram, os poucos minutos que
tenho foram muitos e saborosos, até porque fiz valer cada minuto. Ainda fiz
assistências, estreei-me num jogo épico, em que entrei e faço a assistência
para o golo. Aparecer ali no Nacional
a jogar para Liga
Europa e ter minutos foi fantástico. Aprendi muito e deu-me uma grande
bagagem.” “Eu dizia isto às vezes a
brincar: se tivesse tido uma lesão tipo rotura de ligamentos no Nacional
que pudesse usar como desculpa, era melhor. Mas vamos estar aqui a mentir? Não
é preferível reconhecer mérito e valor aos outros? Estou a tirar valor a mim
por dizer que os outros são melhores?”, acrescentou. Nas épocas que se seguiram
encontrou o seu espaço na II
Liga. Depois de um ano no Portimonense,
ajudou o Moreirense
a subir à I
Liga, tendo juntado o título nacional do segundo
escalão à promoção.
Em dezembro de 2014 ia jogando
com alguma regularidade no Farense
quando o seu mundo desabou, com a morte da mãe. A viver um drama familiar,
pediu para rescindir com os algarvios
para voltar a Sines para fazer o luto, inicialmente sem a intenção de voltar a
jogar futebol. “Uma vez que não queria enganar ninguém, solicitei a rescisão do
contrato que me ligava ao Farense.
Não estava ali de corpo e alma, não reunia condições para render o que posso.
Recebi convites de clubes da II
Liga, mas entendi ser o momento de voltar a casa”, explicou ao Record
em fevereiro de 2015. A dada altura começou a ir ver os
treinos dos seniores do Vasco
da Gama e a partir daí o regresso à sua casa desportiva foi ganhando forma.
“Longe de mim eu pensar que ia voltar a jogar lá, andei o janeiro todo a ver o
que fazia à minha vida. Comecei a dar umas corridas à volta do campo e, quando
faltava alguém, começaram a convidar-me para entrar nas peladas. E comecei a
treinar e isso começou a saber muito bem, pela vida. Treinar com os meus amigos
soube-me pela vida, malta com quem eu tinha crescido. Atenção, isto é o mais
amador possível, alguns pelados eram horríveis. Esse conforto, aliado ao facto
de querer continuar a jogar, nem que fosse para isto ter algum sentido, levou a
que isso acontecesse”, lembrou. A reestreia pelo Vasco
aconteceu a 22 de fevereiro de 2015, num empate sem golos diante do Alcacerense
no Municipal de Sines. “Há muito tempo que não se via tanta gente no Municipal.
Até tive direito a uma faixa, onde se lia bem-vindo a casa. (…) O dinheiro não
é tudo na vida. Nesta altura, sou mais feliz ao lado do meu pai, da minha irmã
e irmão e dos amigos. Tomei uma decisão ponderada e consciente. Não fazia
sentido ir para longe, pois preciso desta gente”, frisou, referindo-se aos companheiros
de equipa “quase” como “uma segunda família”.
Esse romantismo levou os sineenses
a contar com um reforço de peso que contribuiu para a caminhada até à final da
Taça AF Setúbal em 2015 e para a subida de divisão à I
Distrital em 2016. Nas temporadas seguintes, às ordens do irmão
Vítor, foi figura de proa no primeiro escalão do distrito: melhor marcador
do campeonato em 2016-17, com 24 golos (os mesmos de Cami, do Olímpico
Montijo); e segundo melhor marcador na época seguinte, com 22 (a um de
Karadas, do O Grandolense). Em 2019-20 levava 18 remates
certeiros em 19 jogos oficiais aquando da eclosão da pandemia de covid-19.
Terminou a primeira volta no topo da tabela dos goleadores, mas depois foi
ultrapassado por Bruninho.
E foi ainda muito capaz, à beira do 35.º aniversário, que decidiu pendurar
definitivamente as botas, em junho de 2020. “No próximo ano sentia que o meu
rendimento ia começar a cair. Com naturalidade ia jogar menos. Por lesões que
cada vez são mais frequentes, mais vezes substituído ou suplente, ou ia jogar
pelo estatuto que tenho ou pelo respeito que me têm e isto sem treinar
regularmente, pois já não o consigo fazer. Desde a primeira hora defendo que
quem treina mais, joga mais. Os clubes amadores só sobrevivem assim, não
existem melhores nem piores. Existe compromisso. Não quero tirar espaço a
miúdos da formação que treinam todos os dias e jogar só porque bato uns livres.
Não quero acabar assim, a arrastar-me, a ser assobiado por quem me aplaudiu. Já
vi esse filme com outros atores e não quero esse papel. No futebol, mais
importante que entrar é saber sair na hora certa. E esta era a minha, no clube
que mais amo e no único possível”, justificou nas redes sociais.
Fora dos relvados, após deixar o
futebol profissional começou por tirar um curso de mecatrónica. Depois estagiou
no Porto de Sines e tornou-se chefe de agência da Carglass local. Presentemente é motorista de pesados na Câmara
Municipal de Sines, coordenador dos petizes e dos traquinas do Vasco
da Gama e comentador no Canal 11, após ter passado por SIC
Notícias e DAZN.
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