Hugo Marques sente-se acarinhado pelos adeptos do Farense |
Numa entrevista profunda dividida
em duas partes – esta é a segunda, poder ler a primeira AQUI -, o veterano guardião internacional angolano
revisitou os tempos em que jogou no 1º de Agosto e especialmente no Kabuscorp, clube
em que foi colega de Rivaldo e de onde saiu de forma conturbada, com salários
em atraso e em rota de colisão com o treinador Miller Gomes. Por outro lado, declara-se
apaixonado pelo emblema representa, sonhando levá-lo às competições europeias.
Passou duas épocas no 1° de Agosto. Como foi representar o clube militar,
o que tem maior número de adeptos em Angola?
Foi uma experiência inesquecível,
pois tive o prazer de estar num clube grande de Angola
e no melhor organizado. Boa estrutura, boas condições e um grande presidente,
ao qual agradeço o apoio que me deu sempre. Até na hora da rescisão foi um
grande homem. Acho que fizemos uma boa campanha, foi outro projeto de um clube que
não lutava pelo título há alguns anos e fomos vice-campeões nesse ano, lutámos
até onde nos deixaram no campeonato e voltamos à Liga dos Campeões pelo segundo
ano consecutivo. A par do Kabuscorp foi o meu maior desafio.
No Kabuscorp, teve a oportunidade de jogar com o Rivaldo, Bola de Ouro
em 1999 e campeão
do mundo pelo Brasil em 2002. Como foi partilhar o balneário com uma lenda?
Foi mais uma lenda na minha
carreira, claro que com o peso de ser campeão do mundo e melhor do mundo. Já
tinha estado no mesmo balneário que Vítor Baía, Deco, Bruno Alves, Hélder
Postiga, Pedro Emanuel e outros, e o Rivaldo foi mais um que veio para me
mostrar que quanto mais se ganha no futebol mais humilde se pode ser. Foi mais um
troféu no meu currículo. Mas atenção, tive jogadores em outros clubes que me
fizeram também ver muito no futebol e isso não se compra.
Em primeiro lugar, há mais
talento em Angola
do que se possa imaginar. Se os clubes adotarem um trabalho desde da formação
até aos seniores, Angola
será uma grande potência africana. É como pegar num Ferrari com rodas de mota e
pô-lo na Fórmula 1, ele vai correr, mas nunca irá chegar ao patamar mais alto.
Vejo aí a grande diferença de um futebol para o outro. De resto, há muita
paixão, coração e alma para dar.
"Miller Gomes foi a maior desilusão da minha carreira. Tratou-me
abaixo de cão"
Hugo Marques jogou com Rivaldo no Kabuscorp em 2012 |
Achei que chegava de estar longe
do futebol europeu. Tinha feito a minha história em Angola
e precisava de mais estabilidade junto da minha família e amigos em Portugal.
A última experiência não foi a que mais desejei. Ficaram-me a faltar dois jogos
para fazer 100 pelo Kabuscorp, mas não joguei muito no último ano e não foi por
falta de empenho nem por falta de profissionalismo ou qualidade, simplesmente
apanhei dois treinadores um pouco diferentes daquilo que estava acostumado no
futebol, mas mesmo assim não deixei de trabalhar e de estar sempre de cabeça
erguida.
O primeiro treinador da época [o
sérvio Ljubomir Ristovski] era novo, sem experiência em Angola
e de um clube como o Kabuscorp, em que muitas das vezes a pressão é de dentro e
ele não soube lidar com isso. Houve um jogo para a Liga dos Campeões em que Trésor
Mputu reuniu-se com o Lami Thilly e Daniel Mpelé e foram falar diretamente com
o presidente, porque queriam que eu jogasse. Fiquei orgulhoso porque tinha um
grande respeito por eles e eles por mim, e isso é muito bom.
O segundo treinador da época [Miller
Gomes] foi a maior desilusão da minha carreira. Tratou-me e ao Jaime Poulson abaixo
cão (desculpem a expressão). Esteve constantemente a pôr-nos à prova a nível
psicológico, sempre a querer levar-nos ao limite, à espera de uma reação.
Lembro-me que o guarda-redes que jogava na altura [Mário Hipólito] levou o quinto
amarelo e não podia jogar na Taça contra o Sagrada, então fui a jogo (nem sei
como…) e fiz uma defesa espetacular. No intervalo estava 0-0 e mesmo assim
sofri mais uma vez pressão psicológica por parte desse treinador. Fomos a penáltis
depois de ter feito um grande jogo e defendi dois, mas falhámos três. Todos me
vieram abraçar no final, como que a demonstrar o respeito que tinham por tudo o
que tinha feito até ao momento, sempre calado e a trabalhar. Antes da jornada
seguinte, nessa semana, vimos todos esse tal guarda-redes a falar com o
treinador dentro do carro dele. Claro
que chegou o fim de semana e fui para o banco novamente, para o espanto de
todos. Não lhe guardo mágoa, pois se calhar não sabia mais ou precisava de algo
que eu não podia oferecer fora de campo, mas fez-me crescer. Obrigado mister!
Chegou fim da época, após muitos meses sem ver a família e sem receber o ordenado
e decidi acabar a minha história no Girabola.
Ainda espero a decisão do Tribunal da Relação em Luanda sobre os ordenados em
atraso.
Jogadores como Trésor Mputu e Rivaldo recorreram à FIFA, abrindo um
processo disciplinar contra o Kabuscorp por incumprimentos contratuais, o que
levou o Kabuscorp a uma severa punição que incluía pagamentos das dívidas e multas,
bem como suspensão das competições profissionais durante três anos. Pretende
seguir o mesmo procedimento?
Acho algo desnecessário, porque se
há contratos assinados é porque houve vontade das duas partes. O Presidente
Bento Kangamba tem poder financeiro para acabar com essas dívidas. No meu caso
seria muito fácil, pois tenho um grande apreço e respeito por ele. Bastava uma
conversa e chegávamos a um acordo cordial, pois ele merece também compressão da
nossa parte, mas com compromisso pela resolução da situação.
Ao serviço do 1º de Agosto, clube que representou em 2012 e 2013 |
Como foi a primeira época do seu regresso a Portugal?
Como correu a época no Sp. Covilhã?
Foi um regresso difícil porque
estive muito tempo fora e foi criada uma ideia que tinha estado num campeonato
menos competitivo e que poderia ter perdido qualidades. Tive de ir à
experiência ao Sp. Covilhã, pelo que agradeço ao presidente José de Oliveira
Mendes e ao mister Filipe Gouveia por me terem dado essa oportunidade. Tive uma
receção muito boa pois já conhecia alguns colegas e tive um treinador de guarda-redes
que sempre me deu apoio, estando a jogar ou não, o Luciano Vítor foi muito
importante para eu nunca ir abaixo. Um grande obrigado Luci!
“Saí do Covilhã porque um guarda-redes cedido pelo Benfica
tinha de jogar sempre”
Depois do Sp. Covilhã, mudou-se para o Farense,
clube que representa há três temporadas. Como surgiu o convite?
Foi a meio da minha época do Sp.
Covilhã. Estava a jogar só nas taças (onde fizemos história) e queria jogar
mais. Houve interesse de empréstimo nessa época, mas não se concretizou. No
final dessa época tinha mais um ano de contrato com o Sp. Covilhã, mas tinha de
sair pois tinha sido já apalavrado entre o presidente e o Benfica
que um guarda-redes do Sp. Covilhã [Igor Rodrigues] tinha de jogar sempre para
cumprir o negócio. O meu antigo treinador de guarda-redes no Gil Vicente, o
Cândido, ligou-me a perguntar se estava disponível para representar o Farense
e depois passou a chamada ao diretor desportivo Manuel Balela, ao qual agradeço
até hoje a sua postura e humanidade. Passadas algumas horas já sabia do projeto
e sabia que ia encontrar um grande senhor, o presidente João Rodrigues, algo
que depois vim a confirmar. Assinei por um ano e aí começou esta linda história.
Já lá vão três anos... e continuamos a fazer história.
“Ficar na história do Farense
é um desejo enorme”
Hugo Marques sofreu 23 golos em 25 jogos em 2019/20 |
Hoje é titular indiscutível e uma das grandes figuras de um Farense
prestes a subir para a I
Liga, mas nem sempre foi assim. Quais foram as maiores dificuldades que
enfrentou e qual foi o segredo para superar e hoje aparecer a um bom nível?
No primeiro ano fui o jogador com
mais minutos, participando na subida de divisão e na caminhada até aos quartos
de final da Taça
de Portugal. No segundo ano, quando regressei de lesão, tive de esperar e
lutar pelo meu lugar, mas consegui e acabei a época em grande, a ajudar que se
evitasse a descida ao Campeonato de Portugal. Neste momento sou o jogador com
mais minutos da equipa novamente e caso tenhamos a felicidade de subir será um
pouco à imagem da minha primeira época, com muitos minutos e uma subida. Ficar
na história do clube é um desejo enorme. Criei uma imagem muito forte entre os
adeptos e família Farense.
Tenho uma responsabilidade acrescida porque vivo e sinto muito o clube e sou um
dos mais antigos do plantel. Posso vir a fazer algo que ninguém fez no clube,
que é subir desde o Campeonato de Portugal à I
Liga, mas o sonho não acaba aqui...
Aos 34 anos leva 25 Jogos, apenas 23 golos sofridos e 2250 minutos em
todas competições e está prestes a levar o Farense
à I
Liga. Sente que está na melhor fase da sua carreira?
Sim, talvez esteja. Os últimos três
anos foram a prova de que qualquer guarda redes precisa de jogar para evoluir. Sinto-me
muito confiante e sei ler muito melhor o jogo. Erro como qualquer um, mas menos
vezes. Tenho poucos golos sofridos nos últimos três anos também pela qualidade
que tenho encontrado na equipa. No ano passado lutámos para não descer e mesmo
assim fomos a quinta melhor defesa de Portugal
e a terceira da II
Liga. Há muita qualidade, não é só defender e pôr os jogadores todos lá
atrás, há muito trabalho invisível, muita comunicação - basta um olhar que
resolve um problema -, mas para isso há que ter uma equipa boa e acima de tudo
uma defesa que saiba onde se pode ou não errar.
Uma das suas maiores qualidades é forma como sai dos postes sem medo
nos pontapés de canto e bolas paradas. Porque acha que atualmente os guarda-redes
estão cada vez mais presos à linha de baliza? Acha que corre mais riscos do que
maior parte dos guardiões?
Eu sempre tive esta coragem de
sair destemido dos postes, mas isso depois há fatores que condicionam. Quando
falhas tens de ter a confiança de quem lidera e nisso tenho tido todo o apoio, começando
pelo treinador principal, no qual me revejo muito, e depois no trabalho técnico
e psicológico dos treinadores de guarda redes. Neste momento tenho de trabalhar
bem, mas mais do que tudo, nesta fase da minha carreira preciso mais de alguém
que saiba falar, compreender e saber que o trabalho feito tem de se aproximar
muito do jogo, como fazer menos repetições, mas mais intensas. Nisso também
tenho sorte pois tenho um treinador de guarda-redes muito experiente, o Miguel
Rosa, e outro [Ricardo Silva] que está a ganhar experiência, mas que também lê
muito bem o jogo. Tenho dois treinadores de guarda-redes que chutam com pés diferentes
e até nisso saí a ganhar. Resumindo, és forte porque quem está acima de ti
também o é.
O ambiente é de euforia e de uma
grande expectativa sobre o que se vai suceder nestas últimas 10 jornadas. O
clube está na zona de subida quase desde do início do campeonato e pode
finalmente voltar à divisão de onde nunca deveria ter saído pela sua grandeza, pelos
adeptos e por quem sofreu durante estes tão longos e não merecidos anos.
“O Farense
é o meu clube de sonho”
O que tem o Farense
de tão especial?
Não conhecia por dentro o que era
ser Farense,
conhecia o clube e os adeptos, mas não sabia o que era representar um clube
assim tão especial. O Farense
é o meu clube de sonho. Sou respeitado, estou a fazer história e sinto que
quando entro em campo tenho todos a puxar por mim. Neste momento não sou de Faro,
mas sou Farense
e dou a vida por este clube.
O contrato do Hugo
Marques com o Farense
termina a 30 de junho. Já há uma proposta ou acordo para a renovação?
Para já estamos focados no nosso
objetivo principal que é subir de divisão, algo que não é uma obrigação, mas
agora que estamos tão perto queremos alcançar. Depois disso haverá conversas para
continuar ou não, sabendo que a minha vontade é ficar e continuar a fazer
história. Mas nós jogadores de futebol não nos podemos agarrar a nada, apenas simplesmente
viver e desfrutar do momento, algo que estou a fazer.
Alcunha “Choco” é abreviatura de… chocolate
Hugo Marques soma 78 jogos oficiais na baliza do Farense |
É conhecido nas lides do futebol como "Choco”. De onde vem a alcunha?
Quando era pequeno apelidavam-me
de chocolate por causa da cor da pele, mas com o tempo começaram a abreviar e
ficou choco. Quem me conhece desde pequeno ou é da família sabe que essa é a
minha alcunha, mesmo no futebol quando me chamam Hugo soa a esquisito.
Qual é o seu maior sonho enquanto futebolista?
Jogar na I
Liga e chegar à Europa com o Farense
e jogar outro CAN
ou qualificar Angola
para um Mundial.
Para terminar, que conselhos deixa a todos os jovens que sonham ser jogadores
de futebol?
Primeiro de tudo, nunca ponham a
carreira de jogador primeiro lugar. Sempre a escola. Se por acaso vos disserem
que têm jeito para a bola, conciliem as duas coisas, porque os estudos são a
coisa mais importante para o vosso futuro. Em último lugar, quero agradecer a
todas as pessoas que sempre me apoiaram nas minhas derrotas e nos golos
sofridos, ao grande Fernando Belo, fisioterapeuta que me recuperou de lesão sem
ter desistido de mim e um amigo para a vida, a todos os meus treinadores pois
sem eles não ia crescer como cresci, aos meus familiares de sangue, irmãos e
pais e familiares de vida - Filipe Santos e pais, Sandra Santos e pais, Guilhas
e família, amigos da matriz e outros, vocês são únicos -, à minha família por
me consolar sempre naquela momentos que só eles sabem e, claro, uma grande
vénia à minha mulher, pois só ela sabe o que lutei e - mesmo ela, o que lutou -
para estarmos como estamos. Por fim agradecer a esta entrevista e fico a torcer
por mais deste género aos angolanos
na diáspora. Grande abraço!
Entrevista realizada
por Romilson Teixeira
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