quarta-feira, 15 de abril de 2020

Hugo Marques: “Não sou de Faro, mas sou Farense. Dou a vida por este clube”

Hugo Marques sente-se acarinhado pelos adeptos do Farense
Uma das figuras de um Farense que está muito bem posicionado para subir à I Liga, o guarda-redes Hugo Marques sente-se feliz, em casa e com vontade de fazer história no histórico clube algarvio, quase cinco depois de ter saído de forma pela porta pequena do futebol angolano.

Numa entrevista profunda dividida em duas partes – esta é a segunda, poder ler a primeira AQUI -, o veterano guardião internacional angolano revisitou os tempos em que jogou no 1º de Agosto e especialmente no Kabuscorp, clube em que foi colega de Rivaldo e de onde saiu de forma conturbada, com salários em atraso e em rota de colisão com o treinador Miller Gomes. Por outro lado, declara-se apaixonado pelo emblema representa, sonhando levá-lo às competições europeias.

Passou duas épocas no 1° de Agosto. Como foi representar o clube militar, o que tem maior número de adeptos em Angola?
Foi uma experiência inesquecível, pois tive o prazer de estar num clube grande de Angola e no melhor organizado. Boa estrutura, boas condições e um grande presidente, ao qual agradeço o apoio que me deu sempre. Até na hora da rescisão foi um grande homem. Acho que fizemos uma boa campanha, foi outro projeto de um clube que não lutava pelo título há alguns anos e fomos vice-campeões nesse ano, lutámos até onde nos deixaram no campeonato e voltamos à Liga dos Campeões pelo segundo ano consecutivo. A par do Kabuscorp foi o meu maior desafio.

No Kabuscorp, teve a oportunidade de jogar com o Rivaldo, Bola de Ouro em 1999 e campeão do mundo pelo Brasil em 2002. Como foi partilhar o balneário com uma lenda?
Foi mais uma lenda na minha carreira, claro que com o peso de ser campeão do mundo e melhor do mundo. Já tinha estado no mesmo balneário que Vítor Baía, Deco, Bruno Alves, Hélder Postiga, Pedro Emanuel e outros, e o Rivaldo foi mais um que veio para me mostrar que quanto mais se ganha no futebol mais humilde se pode ser. Foi mais um troféu no meu currículo. Mas atenção, tive jogadores em outros clubes que me fizeram também ver muito no futebol e isso não se compra.

Como define o nível do Girabola? Qual é a maior diferença entre o futebol angolano e o europeu?
Em primeiro lugar, há mais talento em Angola do que se possa imaginar. Se os clubes adotarem um trabalho desde da formação até aos seniores, Angola será uma grande potência africana. É como pegar num Ferrari com rodas de mota e pô-lo na Fórmula 1, ele vai correr, mas nunca irá chegar ao patamar mais alto. Vejo aí a grande diferença de um futebol para o outro. De resto, há muita paixão, coração e alma para dar.


"Miller Gomes foi a maior desilusão da minha carreira. Tratou-me abaixo de cão"

Hugo Marques jogou com Rivaldo no Kabuscorp em 2012
Depois de cinco épocas em Angola volta a Portugal para jogar no Sp. Covilhã. O que motivou a sua saída do Kabuscorp?
Achei que chegava de estar longe do futebol europeu. Tinha feito a minha história em Angola e precisava de mais estabilidade junto da minha família e amigos em Portugal. A última experiência não foi a que mais desejei. Ficaram-me a faltar dois jogos para fazer 100 pelo Kabuscorp, mas não joguei muito no último ano e não foi por falta de empenho nem por falta de profissionalismo ou qualidade, simplesmente apanhei dois treinadores um pouco diferentes daquilo que estava acostumado no futebol, mas mesmo assim não deixei de trabalhar e de estar sempre de cabeça erguida.
O primeiro treinador da época [o sérvio Ljubomir Ristovski] era novo, sem experiência em Angola e de um clube como o Kabuscorp, em que muitas das vezes a pressão é de dentro e ele não soube lidar com isso. Houve um jogo para a Liga dos Campeões em que Trésor Mputu reuniu-se com o Lami Thilly e Daniel Mpelé e foram falar diretamente com o presidente, porque queriam que eu jogasse. Fiquei orgulhoso porque tinha um grande respeito por eles e eles por mim, e isso é muito bom.
O segundo treinador da época [Miller Gomes] foi a maior desilusão da minha carreira. Tratou-me e ao Jaime Poulson abaixo cão (desculpem a expressão). Esteve constantemente a pôr-nos à prova a nível psicológico, sempre a querer levar-nos ao limite, à espera de uma reação. Lembro-me que o guarda-redes que jogava na altura [Mário Hipólito] levou o quinto amarelo e não podia jogar na Taça contra o Sagrada, então fui a jogo (nem sei como…) e fiz uma defesa espetacular. No intervalo estava 0-0 e mesmo assim sofri mais uma vez pressão psicológica por parte desse treinador. Fomos a penáltis depois de ter feito um grande jogo e defendi dois, mas falhámos três. Todos me vieram abraçar no final, como que a demonstrar o respeito que tinham por tudo o que tinha feito até ao momento, sempre calado e a trabalhar. Antes da jornada seguinte, nessa semana, vimos todos esse tal guarda-redes a falar com o treinador dentro do carro dele.  Claro que chegou o fim de semana e fui para o banco novamente, para o espanto de todos. Não lhe guardo mágoa, pois se calhar não sabia mais ou precisava de algo que eu não podia oferecer fora de campo, mas fez-me crescer. Obrigado mister! Chegou fim da época, após muitos meses sem ver a família e sem receber o ordenado e decidi acabar a minha história no Girabola. Ainda espero a decisão do Tribunal da Relação em Luanda sobre os ordenados em atraso.

Jogadores como Trésor Mputu e Rivaldo recorreram à FIFA, abrindo um processo disciplinar contra o Kabuscorp por incumprimentos contratuais, o que levou o Kabuscorp a uma severa punição que incluía pagamentos das dívidas e multas, bem como suspensão das competições profissionais durante três anos. Pretende seguir o mesmo procedimento?
Acho algo desnecessário, porque se há contratos assinados é porque houve vontade das duas partes. O Presidente Bento Kangamba tem poder financeiro para acabar com essas dívidas. No meu caso seria muito fácil, pois tenho um grande apreço e respeito por ele. Bastava uma conversa e chegávamos a um acordo cordial, pois ele merece também compressão da nossa parte, mas com compromisso pela resolução da situação.

Ao serviço do 1º de Agosto, clube que representou em 2012 e 2013
Como foi a primeira época do seu regresso a Portugal? Como correu a época no Sp. Covilhã?
Foi um regresso difícil porque estive muito tempo fora e foi criada uma ideia que tinha estado num campeonato menos competitivo e que poderia ter perdido qualidades. Tive de ir à experiência ao Sp. Covilhã, pelo que agradeço ao presidente José de Oliveira Mendes e ao mister Filipe Gouveia por me terem dado essa oportunidade. Tive uma receção muito boa pois já conhecia alguns colegas e tive um treinador de guarda-redes que sempre me deu apoio, estando a jogar ou não, o Luciano Vítor foi muito importante para eu nunca ir abaixo. Um grande obrigado Luci!


“Saí do Covilhã porque um guarda-redes cedido pelo Benfica tinha de jogar sempre”

Depois do Sp. Covilhã, mudou-se para o Farense, clube que representa há três temporadas. Como surgiu o convite?
Foi a meio da minha época do Sp. Covilhã. Estava a jogar só nas taças (onde fizemos história) e queria jogar mais. Houve interesse de empréstimo nessa época, mas não se concretizou. No final dessa época tinha mais um ano de contrato com o Sp. Covilhã, mas tinha de sair pois tinha sido já apalavrado entre o presidente e o Benfica que um guarda-redes do Sp. Covilhã [Igor Rodrigues] tinha de jogar sempre para cumprir o negócio. O meu antigo treinador de guarda-redes no Gil Vicente, o Cândido, ligou-me a perguntar se estava disponível para representar o Farense e depois passou a chamada ao diretor desportivo Manuel Balela, ao qual agradeço até hoje a sua postura e humanidade. Passadas algumas horas já sabia do projeto e sabia que ia encontrar um grande senhor, o presidente João Rodrigues, algo que depois vim a confirmar. Assinei por um ano e aí começou esta linda história. Já lá vão três anos... e continuamos a fazer história.


“Ficar na história do Farense é um desejo enorme”

Hugo Marques sofreu 23 golos em 25 jogos em 2019/20
Hoje é titular indiscutível e uma das grandes figuras de um Farense prestes a subir para a I Liga, mas nem sempre foi assim. Quais foram as maiores dificuldades que enfrentou e qual foi o segredo para superar e hoje aparecer a um bom nível?
No primeiro ano fui o jogador com mais minutos, participando na subida de divisão e na caminhada até aos quartos de final da Taça de Portugal. No segundo ano, quando regressei de lesão, tive de esperar e lutar pelo meu lugar, mas consegui e acabei a época em grande, a ajudar que se evitasse a descida ao Campeonato de Portugal. Neste momento sou o jogador com mais minutos da equipa novamente e caso tenhamos a felicidade de subir será um pouco à imagem da minha primeira época, com muitos minutos e uma subida. Ficar na história do clube é um desejo enorme. Criei uma imagem muito forte entre os adeptos e família Farense. Tenho uma responsabilidade acrescida porque vivo e sinto muito o clube e sou um dos mais antigos do plantel. Posso vir a fazer algo que ninguém fez no clube, que é subir desde o Campeonato de Portugal à I Liga, mas o sonho não acaba aqui...

Aos 34 anos leva 25 Jogos, apenas 23 golos sofridos e 2250 minutos em todas competições e está prestes a levar o Farense à I Liga. Sente que está na melhor fase da sua carreira?
Sim, talvez esteja. Os últimos três anos foram a prova de que qualquer guarda redes precisa de jogar para evoluir. Sinto-me muito confiante e sei ler muito melhor o jogo. Erro como qualquer um, mas menos vezes. Tenho poucos golos sofridos nos últimos três anos também pela qualidade que tenho encontrado na equipa. No ano passado lutámos para não descer e mesmo assim fomos a quinta melhor defesa de Portugal e a terceira da II Liga. Há muita qualidade, não é só defender e pôr os jogadores todos lá atrás, há muito trabalho invisível, muita comunicação - basta um olhar que resolve um problema -, mas para isso há que ter uma equipa boa e acima de tudo uma defesa que saiba onde se pode ou não errar.

Uma das suas maiores qualidades é forma como sai dos postes sem medo nos pontapés de canto e bolas paradas. Porque acha que atualmente os guarda-redes estão cada vez mais presos à linha de baliza? Acha que corre mais riscos do que maior parte dos guardiões?
Eu sempre tive esta coragem de sair destemido dos postes, mas isso depois há fatores que condicionam. Quando falhas tens de ter a confiança de quem lidera e nisso tenho tido todo o apoio, começando pelo treinador principal, no qual me revejo muito, e depois no trabalho técnico e psicológico dos treinadores de guarda redes. Neste momento tenho de trabalhar bem, mas mais do que tudo, nesta fase da minha carreira preciso mais de alguém que saiba falar, compreender e saber que o trabalho feito tem de se aproximar muito do jogo, como fazer menos repetições, mas mais intensas. Nisso também tenho sorte pois tenho um treinador de guarda-redes muito experiente, o Miguel Rosa, e outro [Ricardo Silva] que está a ganhar experiência, mas que também lê muito bem o jogo. Tenho dois treinadores de guarda-redes que chutam com pés diferentes e até nisso saí a ganhar. Resumindo, és forte porque quem está acima de ti também o é.


Como está o ambiente em Faro perante a possibilidade do regresso à I Liga 18 anos depois?
O ambiente é de euforia e de uma grande expectativa sobre o que se vai suceder nestas últimas 10 jornadas. O clube está na zona de subida quase desde do início do campeonato e pode finalmente voltar à divisão de onde nunca deveria ter saído pela sua grandeza, pelos adeptos e por quem sofreu durante estes tão longos e não merecidos anos.


“O Farense é o meu clube de sonho”

O que tem o Farense de tão especial?
Não conhecia por dentro o que era ser Farense, conhecia o clube e os adeptos, mas não sabia o que era representar um clube assim tão especial. O Farense é o meu clube de sonho. Sou respeitado, estou a fazer história e sinto que quando entro em campo tenho todos a puxar por mim. Neste momento não sou de Faro, mas sou Farense e dou a vida por este clube.

O contrato do Hugo Marques com o Farense termina a 30 de junho. Já há uma proposta ou acordo para a renovação?
Para já estamos focados no nosso objetivo principal que é subir de divisão, algo que não é uma obrigação, mas agora que estamos tão perto queremos alcançar. Depois disso haverá conversas para continuar ou não, sabendo que a minha vontade é ficar e continuar a fazer história. Mas nós jogadores de futebol não nos podemos agarrar a nada, apenas simplesmente viver e desfrutar do momento, algo que estou a fazer.


Alcunha “Choco” é abreviatura de… chocolate

Hugo Marques soma 78 jogos oficiais na baliza do Farense
É conhecido nas lides do futebol como "Choco”. De onde vem a alcunha?
Quando era pequeno apelidavam-me de chocolate por causa da cor da pele, mas com o tempo começaram a abreviar e ficou choco. Quem me conhece desde pequeno ou é da família sabe que essa é a minha alcunha, mesmo no futebol quando me chamam Hugo soa a esquisito.

Qual é o seu maior sonho enquanto futebolista?
Jogar na I Liga e chegar à Europa com o Farense e jogar outro CAN ou qualificar Angola para um Mundial.

Para terminar, que conselhos deixa a todos os jovens que sonham ser jogadores de futebol?
Primeiro de tudo, nunca ponham a carreira de jogador primeiro lugar. Sempre a escola. Se por acaso vos disserem que têm jeito para a bola, conciliem as duas coisas, porque os estudos são a coisa mais importante para o vosso futuro. Em último lugar, quero agradecer a todas as pessoas que sempre me apoiaram nas minhas derrotas e nos golos sofridos, ao grande Fernando Belo, fisioterapeuta que me recuperou de lesão sem ter desistido de mim e um amigo para a vida, a todos os meus treinadores pois sem eles não ia crescer como cresci, aos meus familiares de sangue, irmãos e pais e familiares de vida - Filipe Santos e pais, Sandra Santos e pais, Guilhas e família, amigos da matriz e outros, vocês são únicos -, à minha família por me consolar sempre naquela momentos que só eles sabem e, claro, uma grande vénia à minha mulher, pois só ela sabe o que lutei e - mesmo ela, o que lutou - para estarmos como estamos. Por fim agradecer a esta entrevista e fico a torcer por mais deste género aos angolanos na diáspora. Grande abraço!


Entrevista realizada por Romilson Teixeira



















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