quarta-feira, 24 de julho de 2024

Muitos contestam o crescimento artificial dos “novos ricos”. Então e os velhos ricos?

Berlusconi segura um troféu europeu ganho pelo AC Milan
Chelsea, Manchester City e Paris Saint-Germain passaram, nas duas últimas décadas, de clubes de pouca relevância nacional e internacional para crónicos candidatos ao título europeu. Os londrinos, que dos três são hoje os que estão mais longe dos melhores dias, contam já com duas orelhudas no palmarés desde que o magnata russo Roman Abramovich se tornou proprietário em 2003. Os citizens já conquistaram uma Champions e atingiram outra final desde que a propriedade passou para Sheikh Mansour, dos Emirados Árabes Unidos, em 2008. Por sua vez, os parisienses têm o fundo governamental qatari Qatar Sports Investments como acionista maioritário desde 2011, chegaram a uma final da Liga dos Campeões e têm dominado o futebol francês.
 
É inegável que, sem as injeções de capital de que têm sido alvo, dificilmente se teriam tornado em clubes tão bem-sucedidos como são hoje. Além da vertente desportiva, estão entre os mais seguidos nas redes sociais, enchem constantemente estádios, são continuamente convidados para digressões noutros continentes e têm (ou tinham) no seu plantel ídolos à escala planetária.
 
Esse crescimento, como não foi à base da força da massa associativa aliada a uma gestão competente de dirigentes não profissionais, é tido como um crescimento artificial. E estes clubes são repetidamente catalogados como “novos ricos” e criticados por não terem história.
 
A questão é que muitos dos clubes que hoje têm uma história rica são, na verdade, velhos ricos, que também tiveram o tal crescimento artificial, mas numa altura em que não havia a globalização que há hoje, num período em que existiam barreiras burocráticas que vieram a ser quebradas com a criação da União Europeia e a implementação da Lei Bosman. Se tivermos em conta estes fatores, a inflação, o surgimento da televisão por cabo e a modernização e rentabilização de competições como o caso da Liga dos Campeões, que deixou de acolher somente os campeões para receber sobretudo os melhores, Chelsea, PSG e City são apenas versões modernas do que sempre existiu.


Juventus à boleia da Fiat, Milan salvo por Berlusconi 

Comecemos por Itália. Juventus. Vecchia signora, não é? Clube lendário, não é? Dois títulos europeus, três Taças UEFA, uma Taça das Taças e sete finais perdidas da Taça/Liga dos Campeões. Zoff, Platini, Del Piero, Zidane e Buffon. Mas desde 1923 que tem uma ligação umbilical com a FIAT e sua dona, a família Agnelli. De 1900 até então havia conquistado um campeonato, desde então foram 35. Graças a esta relação entre clube e investidor, o emblema de Turim tornou-se no primeiro clube profissional em Itália, no sentido literal do termo.
 
Onze do AC Milan na final da Champions em 1989-90
Continuando em solo transalpino, o AC Milan estabeleceu-se desde cedo como um dos principais clubes de Itália e da Europa, tendo vencido a Taça dos Campeões Europeus em 1962-63 e 1968-69, depois de ter perdido a final de 1957-58, e conquistou também a Taça das Taças em 1967-68 e em 1972-73. Mas depois entrou num período de declínio, envolveu-se no escândalo Totonero, foi relegado para a Série B como castigo em 1980 e foi despromovido novamente, mas desportivamente, em 1982. Perante o fantasma da bancarrota, os rossoneri foram adquiridos em 1986 pelo magnata Silvio Berlusconi, dono da Fininvest e da Mediaset, que salvou o clube milanês e investiu rios de dinheiro para o tornar pujante. O ponto alto deste investimento foram as contratações dos holandeses Ruud Gullit, Marco van Basten e Frank Rijkaard e as conquistas da Taça/Liga dos Campeões Europeus em 1988-89, 1989-90 e 1993-94, tendo ainda perdido as finais de 1992-93 e 1994-95.
 
Também viajando por Itália se percebe que o saudoso Parma abrilhantou o Calcio na década de 1990 quando foi comprado pela multinacional Parmalat, do ramo alimentar, mas que esse brilho se perdeu quando a empresa entrou em bancarrota no início do século XX.
 
Os melhores períodos de Fiorentina (Cecchi Gori) e Lazio (Sergio Cragnotti) também estiveram associados a investidores. É necessário recordar que o emblema laziale chegou a bater o recorde mundial de transferências em 2000, poucas semanas após se sagrar campeão de Itália pela segunda vez na história, ao contratar Hernán Crespo ao Parma por 56,81 milhões de euros – cerca de duas semanas depois, o Real Madrid pagou ao Barcelona os 60 milhões da cláusula de rescisão de Luís Figo.
 

Newcastle teve "Hall" de entrada para a elite

Mesmo em Inglaterra, até um clube antigo e tradicional como o Manchester United contou com ajuda externa até se estabelecer como um dos principais emblemas do país. Foi fundado em 1878 sob a designação Newton Heath LYR Football Club e pertencia à companha ferroviária Lancashire and Yorkshire Railway e só ao fim de dez anos se tornou independente. Mais tarde, contou com a ajuda de empresários, que promoveram injeções de capital em 1902, 1908 e 1931 para impedir a bancarrota.
 
Onze-tipo do Newcastle em 1995-96
Também o Newcastle cresceu desde que John Hall se tornou proprietário em 1992. Contratou Kevin Keegan para treinador, deu-lhe carta branca para contratar os jogadores que quisesse, evitou que os magpies caíssem na Third Division durante a época de estreia e guiou-os ao topo do futebol inglês, nomeadamente ao segundo lugar na Premier League, em 1995-96 e 1996-97. Ao longo desse período, o clube bateu o recorde mundial de transferências, ao contratar Alan Shearer ao Blackburn Rovers por uma verba equivalente a 18 milhões de euros em 1996.
 
Mais a sul, mas também em solo inglês, o Arsenal foi alvo de forte investimento, em 1910, por parte dos empresários Henry Norris e William Hall, que desviaram o clube de um caminho de dificuldades financeiras e baixos números de espetadores no seu estádio e tornaram-no naquele que ficou conhecido como o “Bank of England club”, devido aos fortes investimentos nas décadas de 1920 e 1930.  A designação “Bank of England”, por motivos semelhantes, também foi usada para descrever o Blackpool nos anos 1930, Sunderland no final da década de 1940 e nos anos 1950 e o Everton na década de 1970.
 
Até o Leicester, surpreendente campeão em 2015-16, não chegou a esse título por obra e graça de uma boa gestão de dirigentes locais nem pelas receitas geradas pelos adeptos. Numa fase em que estavam no Championship, os foxes foram adquiridos em 2010 pelo King Power Group, liderado pela milionária família tailandesa Srivaddhanaprabha, e foram crescendo com o investimento que foi feito na equipa.

Abriram-se A(u)las para o Lyon 

Em França, antes de haver um PSG hegemónico, houve um Lyon dominante. Esse domínio doméstico está associado a um homem, Jean-Michel Aulas, que se tornou proprietário do clube em 1987 e investiu fortemente com o objetivo de tornar num emblema estabilizado na Ligue 1 (onde não estava) e de o levar às competições europeias, tendo inclusivamente apresentado um plano intitulado “OL – Europe”. A promoção ao primeiro escalão foi conseguida em 1988-89, numa época em que Aulas deu ao treinador Raymond Domenech carta branca para contratar quem quisesse. Em termos de transferências sonantes, a primeira remonta a 1999, quando o Lyon contratou o brasileiro Sonny Anderson ao Barcelona por 17 milhões de euros, uma verba recorde na altura por parte de um clube francês. Entre 2001-02 e 2007-08 os leões foram sempre campeões gauleses, tendo conquistado nesse período os únicos sete campeonatos que têm no palmarés.
 
Equipa-tipo do Marselha em 1992-93
A história do Marselha também está associada a dois homens que acrescentaram dinheiro aos cofres do clube, Marcel Leclerc (1965-1972) e Bernard Tapie (1986-1994), sobretudo este último, que contratou jogadores de gabarito internacional e guiou o emblema do sul de França à conquista da Liga dos Campeões em 1992-93, a única Champions do futebol gaulês.
 
O Bordéus também foi propriedade do magnata do ramo da ótica Alain Afflelou (1991-1996) e do grupo de televisão francês M6 (1999-2018), tendo iniciado esse conjunto de dois períodos com o título de campeão da… Ligue 2 (1991-92). Entretanto conquistou também dois campeonatos (1998-99 e 2008-09), uma Taça de França (2012-13) e três Taças da Liga (2001-02, 2006-07 e 2008-09), tendo ainda atingido a final da Taça UEFA em 1995-96.
 

Transferência recorde já foi do... Betis

Em Espanha também houve fenómenos de crescimento artificial. O Betis constituiu uma SAD em 1992, o seu presidente Manuel Ruiz de Lopera tornou-se acionista maioritário, e as épocas que se seguiram foram de alguma pujança. Em 1994-95 coroou o regresso à Primeira Liga Espanhola com a qualificação para a Taça UEFA, em 1997 atingiu a final da Taça do Rei, nos anos que se somou mais participações nas competições europeias e em 1998 bateu o recorde mundial de transferências ao pagar 30 milhões de euros ao São Paulo pela contratação do extremo brasileiro Denílson.
 
Pelos Países Baixos há o exemplo do PSV, que foi fundado pela companhia multinacional Philips, em 1913. Inicialmente o clube estava apenas aberto a funcionários da empresa e só contratava jogadores que fossem trabalhar para a Phillips, mas essa regra acabou por ser quebrada. A Philips foi a principal sponsor nas camisolas do emblema de Eindhoven entre 1982 e 2016, pagando anualmente 7,5 milhões de euros pela publicidade. Em 1987-88 venceu a Taça dos Campeões Europeus. Na cidade, o FC Eindhoven, que até nasceu uns anos antes, declara-se o “clube do povo”.
 
Equipa-tipo do Wolfsburgo em 2008-09
Na Alemanha, mesmo sob regras apertadas que obrigam os clubes a deter pelo menos 50% mais uma ação da totalidade das suas ações, o Wolfsburg, campeão nacional em 2008-09, é subsidiário do Grupo Volkswagen. Mais recentemente, o RB Leipzig nasceu por iniciativa da Red Bull, que comprou os direitos desportivos do Markranstädt, do quinto escalão germânico.
 
No leste europeu era comum a existência de clubes associados às forças armadas do seu país. O exemplo mais sonante será o do Steaua Bucareste, com uma ligação umbilical ao exército romeno, campeão europeu em 1986.
 
O futebol português também tem tido os seus casos de crescimento artificial. O mais sonante será certamente o da CUF, que tinha o mesmo nome da empresa Companhia União Fabril (CUF). Com condições invejáveis, alcançou um brilhante 3.º lugar na I Divisão em 1964-65, construiu um estádio e um complexo desportivo do mais moderno que existia em Portugal, somou várias presenças nas competições europeias e alcançou sucesso também em modalidades como ciclismo e hóquei em patins. A nacionalização do grupo CUF, em 1975, na consequência da Revolução de Abril ocorrida no ano anterior, coincidiu com a queda do Grupo Desportivo da CUF, que, entretanto, se tornou Quimigal e posteriormente Fabril.
 
Há ainda o caso do Riopele, clube-empresa de Vila Nova de Famalicão que participou na I Divisão em 1977-78, e que tão depressa apareceu como desapareceu.
 
E será que o Campomaiorense, situado numa vila alentejana, alguma vez teria atingido as ligas profissionais e a final da Taça de Portugal sem o dinheiro investido pela família proprietária da Delta? E os clubes madeirenses, que por diversas ocasiões nas competições europeias, teriam sido tão competitivos sem o dinheiro do governo regional?





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