terça-feira, 2 de março de 2021

Mário Moço. A mãe Angola, os 21 anos de Vitória e o projeto do Comércio e Indústria

Mário Moço orienta a equipa B do Comércio e Indústria
Trabalhou 21 anos no Vitória de Setúbal, nas duas últimas épocas guiou os juniores do Galitos e do Comércio e Indústria às melhores classificações de sempre e esta temporada orienta a equipa B do emblema alvinegro, voltando a estar vinculado ao clube pelo qual começou a jogar futebol federado há quase 40 anos.
 
Numa interessante entrevista, Mário Moço enumera as razões (do clima ao contexto socioeconómico) que precipitam o surgimento de treinadores setubalenses de topo e das diferenças entre treinar equipas da formação e seniores.
 
ROMILSON TEIXEIRA - O Mário Moço assumiu no início desta temporada o projeto da equipa B do Comércio e Indústria, depois de na época passada ter orientado os juniores do emblema sadino. Nos cinco primeiros jogos desta época, leva duas vitórias e três derrotas. Que balanço faz dos primeiros meses de 2020-21?
MÁRIO MOÇO - O balanço que faço dos primeiros cinco jogos desta época é bastante positivo, pois numa equipa muito jovem de sub-23, tendo maioritariamente seniores de primeiro e segundo ano e já terem sido utilizados seis juniores, os objetivos estão a ser cumpridos, embora me custe um pouco em termos de resultados, pois estou habituado a jogar e lutar pelos primeiros lugares. Mas, neste contexto, muito bom.
 
Que projeto é este da equipa B do Comércio e Indústria? Estamos habituados a ver projetos destes no futebol profissional, em que os clubes com capacidade para fazer contratos profissionais de longa duração blindam e desenvolvem os seus jovens atletas, mas não em clubes que jogam nos distritais. O que lhe pediram?
Este projeto nasce num contexto de existirem muitos jovens oriundos dos juniores com muita qualidade, para daqui a médio prazo subirem e fortalecerem a equipa de seniores A. A direção pediu-me que os ajudasse a crescer e a evoluir como jogadores e seres humanos.
 
O último jogo do Comércio e Indústria B foi a 20 de dezembro e o próximo será, ao que tudo indica, no final de março ou em abril. Quais são as principais dificuldades que um treinador sente nesta realidade de jogos tão espaçados no tempo?
Neste contexto de pandemia é muito difícil preparar uma equipa amadora de futebol, principalmente quando se trabalha na base da organização e em princípios de continuidade e progressão contínua. Estas dificuldades fazem com que equipas menos organizadas se aproximem e equilibrem, pois torna mais difícil a assimilação dos ensinamentos dos princípios gerais e específicos por parte dos jogadores.
 
O Mário tem trabalhado sobretudo na formação. É aí que se sente confortável e mais útil? Ou espera ainda fazer um trajeto a treinar seniores?
O facto de ter trabalhado muitos anos na formação não só́ me dá mais conforto na formação, como também nos Seniores, porque quem tem que ensinar os princípios gerais e específicos do futebol a jovens, terá ainda mais facilidade em ensinar a adultos de um modo lúdico e pedagógico. A única diferença está na forma de gestão do grupo. Gerir adultos é fácil quando somos justos e sabemos liderar.
 

“Encontrei um clube em ascensão e em franco desenvolvimento”

O Mário está no Comércio e Indústria desde o início da temporada passada. Que clube encontrou e até onde este emblema setubalense poderá chegar daqui a alguns anos?
Os clubes são na maioria das vezes o espelho de quem os dirige. Pessoas muito organizadas, honestas e unidas, que encontraram o clube com muitas dívidas. Com a sua gestão já́ as pagaram. Por isso encontrei um clube em ascensão e em franco desenvolvimento e crescimento. Agora, com a colocação do relvado sintético e a modernização do estádio, está em franca ascensão, embora o covid-19 tenha retardado esse crescimento. Daqui a alguns anos, o desenvolvimento do clube vai depender muito da forma como ficar todo o contexto socioeconómico causado pelo covid-19.
 
Que princípios de jogo podemos estar à espera de ver quando assistimos a jogos de equipas orientadas pelo Mário?
Os meus princípios de jogo baseiam-se na qualidade técnico-tática do jogo desde a primeira fase de construção até à fase de finalização. No entanto, sou uma pessoa que tem a noção dos resultados e nos seniores por vezes não interessa a qualidade de jogo, mas sim os resultados. Por isso, muitas vezes temos que ser pragmáticos e adaptarmo-nos aos contextos que nos apresentam. E os princípios dependem muito dos contextos dos clubes e dos jogadores que formam a equipa. Um treinador deve adaptar-se ao clube, à sua história, aos seus objetivos e aos jogadores que têm para formar uma equipa e apresentar resultados.
 
O Mário tem feito quase toda a carreira de treinador em Setúbal, cidade de onde são naturais muitos bons treinadores como José Mourinho, Bruno Lage, Quinito, Hélio Sousa ou Mário Narciso, só para citar alguns. O que existe na cidade que potencia o surgimento de tantos treinadores de qualidade?
Na cidade de Setúbal existem fatores de presságio muito fortes que potenciam o surgimento de treinadores com muita qualidade: A cultura e a paixão pelo futebol que a cidade respira; clubes emblemáticos como o Vitória e o Comércio e Indústria, de onde os jogadores e treinadores podem crescer, desenvolver e vivenciar as suas experiências; há o Campus Universitário, onde está inserida a Escola Superior  de Educação de Setúbal; também há um contexto socioeconómico muito bom para criar jogadores de rua; o clima ameno  também ajuda à prática do futebol; a competição saudável entre todos os agentes desportivos; e Lisboa, capital de Portugal, está próxima da cidade de Setúbal. Todos estes aspetos e fatores potenciam a evolução dos treinadores de futebol.
 
Voltando atrás no tempo. Nasceu em Angola, na província de Benguela. Como foi a sua infância e quando se mudou para Portugal?
Eu nasci e vivi até aos seis anos em Angola. Foi uma infância muito boa e feliz, adorei. Nunca mais me esqueci daqueles primeiros seis anos de vida. Mudei-me para Portugal em 1975, após o 25 de Abril, e até hoje nunca tive oportunidade de voltar.
Com muita pena e tristeza minha nunca surgiu a oportunidade de visitar o país c. As memórias que tenho são muito boas. As pessoas e amigos que deixei, o clima tropical e a beleza natural que Angola tem… só dá valor quem conheceu bem Angola.
 
Quando é que a bola entrou para a sua vida?
A bola entrou a minha vida quando fiz um ano e ofereceram me uma bola de plástico vermelha. Nunca a largava, até dormia com ela. Depois, jogava na rua com amigos, na maioria mais velhos. Seguidamente, e com dez anos comecei a entrar em torneios de futebol de cinco. E o meu primeiro ano de federado foi nos iniciados do Comércio e Indústria.
 
Como jogador, o Mário fez quase toda a carreira nos distritais da AF Algarve e da AF Setúbal, em clubes como Torralta, Pinhalnovense e O Grandolense. Que balanço faz do seu trajeto como futebolista?
O meu trajeto como futebolista foi razoável, mas bom o suficiente para saber o que é estar num balneário e saber gerir equipas. Numa primeira fase, com 15 anos fui para a Torralta, que foi a primeira Academia de Futebol em Portugal. Portanto, tive a sorte de estar com os jogadores que eram selecionados pelo país. Com esses melhores jogadores lutávamos com os três grandes pelos primeiros lugares. Infelizmente, quando estava no último ano de júnior e quase a subir aos seniores, lesionei-me no joelho com alguma gravidade e isso depois atrasou-me e talvez me tenha custado a carreira de futebolista.
Depois, preferi terminar os estudos e licenciar-me no curso de professor de ensino básico na Variante de Educação Física. Mas, como sempre tive paixão pelo futebol, fui sempre jogando como amador em clubes da I Distrital das Associações de Futebol de Algarve, Évora e Setúbal.
 
Entretanto tornou-se treinador. Fá-lo a tempo inteiro ou tem outra atividade?
Neste momento não estou a tempo inteiro como treinador de futebol. Sou professor no ensino básico na variante de Educação Física. No entanto, já́ me surgiram propostas em Portugal e no estrangeiro, mas as condições que me apresentaram não me convenceram a deixar a família.
 

“Pessoas que têm gerido o Vitória têm-se servido dele”

Mário Moço trabalhou no Vitória entre 1997 e 2018
O Mário trabalhou mais de duas décadas nas camadas jovens do Vitória de Setúbal. Que balanço faz dessa longa passagem pelo emblema do Bonfim e o que o levou a sair em 2018?
Quando terminei o curso, fui convidado pelo Vitória em 1997 e permaneci até 2018. Foram 21 anos no clube sadino. Penso que foi muito positivo para ambas as partes, pois tive muitos sucessos desportivos e ajudei a evoluir muitos jogadores que têm chegado ao mais alto nível. Por outro lado, o clube também me ajudou a crescer, a desenvolver e evoluir sob todos os aspetos de treinador de futebol. É saí do clube porque o coordenador e eu chegámos à conclusão de que necessitava de outras vivências e seria mais benéfico sair para continuar a consolidar os meus conhecimentos como treinador de futebol.
 
Que opinião tem sobre o atual estado do Vitória?
A minha opinião como adepto, sócio e até treinador foi que o Vitória serviu de exemplo aos outros clubes da I Liga que têm que cumprir com os pressupostos. Por outro lado, infelizmente as pessoas que têm gerido o clube, têm-se servido dele. Atualmente, não consigo compreender o que se passa no clube, pois temos a SAD no Campeonato de Portugal e o clube na II Distrital, um clube partido em dois e com imensas dívidas. Se pagar as minhas quotas de sócio, sou sócio de quem? Para onde vai esse dinheiro?
 
No Vitória treinou João Valido, que esta temporada é o dono da baliza da equipa principal e tem sido um dos destaques não só da equipa como do Campeonato de Portugal. O que nos pode dizer sobre ele como pessoa e como guarda-redes? Até onde pode chegar?
Sim, tive a sorte e o orgulho de ser treinador do João Valido durante alguns anos. É um ser humano fantástico e completo que qualquer treinador adora ter no seu plantel, amigo dos seus colegas, apoiando-os e ajudando-os, um líder e um capitão de equipa por natureza. É dedicado e com muita paixão no seu trabalho de guarda-redes e complementando com a prática de outros desportos que o ajudam na parte física e mental. Se não tiver nenhuma lesão grave irá chegar muito longe, não tenho a menor dúvida.
 

“Ajudei os juniores do Galitos a alcançarem a melhor classificação de sempre”

Mário Moço nos juniores do Galitos em 2018-19
Em 2018-19 guiou os juniores do Galitos a um honroso quarto lugar na I Distrital de juniores. O que está por trás do sucesso recente das equipas jovens do clube do Barreiro?
Ajudei o Galitos a alcançar a sua melhor classificação de sempre. Consegui juntar a minha experiência adquirida ao contexto do Galitos e ajudei a formar um grupo de jovens muito forte em todos os aspetos, quase uma família de jogadores que fizeram uma equipa muito unida, humilde e com muita vontade de aprender os meus ensinamentos. Há pouco tempo, um desses jogadores (Mica) telefonou-me a agradecer tudo o que fiz por ele e disse-me que foi contratado para os sub-23 do Boavista.
No ano seguinte, consegui o 2.º lugar no campeonato distrital da I Divisão de juniores pelo Comércio e Indústria, também a melhor classificação de sempre do clube neste escalão. Também consegui formar outra equipa muito forte. Daí terem-me convidado para os seniores B.
 
Gostava de trabalhar no futebol angolano?
Gostava de trabalhar no futebol angolano, porque tem jogadores de muita qualidade. Se forem bem trabalhados poderão evoluir muito e terem muito sucesso. Embora os problemas estruturais de Angola possam dificultar esse desenvolvimento e os problemas socioeconómicos estejam diretamente ligados com a performance e rendimento porque se o atleta não se alimenta nem se cuida também terá́ dificuldades em ter um elevado rendimento.
 
Que opinião tem sobre o futebol angolano? Costuma acompanhar Girabola e seleção?
Claro que costumo acompanhar o Girabola e a seleção. No campeonato deste ano o Petro e o Interclube estão muito acima dos outros e um deles será́ campeão. Adorei a seleção de Angola no Mundial em que obteve a melhor classificação de sempre, em que o meu grande amigo Paulo Figueiredo jogou. Foi um Mundial de orgulho para todos os angolanos. Depois dessa geração nunca mais conseguimos atingir esses patamares com muita tristeza minha.
 
Também é inevitável falar da pandemia de Covid-19. Sente-se seguro ao estar sem máscara perto de tantas pessoas que não são regularmente testadas?
Eu protejo-me e cumpro as regras do covid-19, mas também não posso estar sempre a pensar quando posso apanhar covid-19. Portanto, estou sem máscara no banco e não penso nisso durante o jogo, pois afasto-me dos suplentes, mas quando termina o jogo coloco logo a máscara e cumpro as regras, protegendo-me a mim e aos outros.
 
 
Entrevista realizada por Romilson Teixeira



















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