sábado, 17 de outubro de 2020

Fernando “Humildade” Tomé. O portuense que respira Setúbal e Vitória

Tomé quando ainda era uma promessa do Vitória
17 de outubro de 1965. Estádio do Bonfim. Sexta jornada da I Divisão. Vitória–Varzim. Após um arranque de campeonato não muito bem conseguido, o treinador sadino Fernando Vaz lançou no onze inicial o jovem médio da formação Fernando Tomé, então com 18 anos. Os setubalenses não foram além de um empate a um golo, mas nesse dia teve início o trajeto na equipa principal de uma das maiores lendas vivas do clube.

Filho do futebolista João Tomé, natural de Setúbal – a mãe é de Alcácer do Sal -, nasceu no Porto a 10 de julho de 1947, quando o pai representava o Académico local. Quem diria?  “O meu estatuto de naturalidade não condiz com a minha vivência. Toda a minha família do lado paterno é natural de Setúbal, de um bairro bem bonito que é o Bairro Santos Nicolau, e eu fui nascer longe. O meu pai jogava no Académico do Porto, levou a minha mãe para lá e eu nasci na freguesia de Campanhã. Infelizmente, toda a gente se pode naturalizar em relação a outros países, mas eu não posso ter outra naturalidade, porque se não eu já tinha mudado há muito tempo. Costumo dizer que tenho uma boa madrasta que é Setúbal, tenho um bom padrasto que é o Bairro Santos Nicolau e tenho um pai desportivo fabuloso que é o Vitória”, contou ao jornal O Setubalense em abril de 2016.


Embora tenha nascido no Porto e vivido na Covilhã, na Barrosinha (herdade perto de Alcácer do Sal), Moura e Aljustrel, para acompanhar a carreira do pai, foi mesmo à beira-Sado que se estabeleceu. “Vim para a escola comercial. Antes do Vitória de Setúbal ainda fiz um torneio em miúdo pela equipa do Bairro Santos Nicolau, o Vasco da Gama”, disse ao DN em agosto de 2018.

Prenda especial no 20.º aniversário

Tomé com a Taça de Portugal erguida bem alto no Estádio Nacional
Formado no Vitória, desfilou no Bonfim aquando no dia da inauguração do estádio, a 16 de setembro de 1962, três anos antes de começar a escrever a letras douradas a sua história no clube. Em sete temporadas na equipa principal, entre 1965 e 1970 e entre 1976 e 1978, disputou cerca de 200 encontros com a camisola verde e branca, 19 dos quais nas competições europeias e três em finais de Taças de Portugal, entre as quais a de 1967, ganha à Académica após 144 minutos de jogo.

“Foi a final mais longa de sempre, frente à Académica, foi especial. Na vinda para Setúbal, começámos a encontrar carros de vitorianos para nos receber logo no Casal do Marco. Demorámos tanto tempo que só chegámos a Setúbal à meia-noite. E na Praça do Bocage, não cabia a cabeça de um alfinete”, recordou o antigo médio. “Fiz 20 anos no dia seguinte à final. Eu e o Vítor [Baptista] éramos os mais novos da equipa”, aditou o antigo centrocampista, que vive na zona dos Arcos, em Montalvão.

Mas houve mais partidas especiais, como a primeira no Estádio da Luz, na qual inaugurou o marcador e foi forçado a sair (e a reentrar) após levar uma cabeçada. “Numa jogada com o Cruz, que era o lateral esquerdo do Benfica, ele deu-me uma cabeçada e eu tive de sair, fiquei 20 minutos fora e reentrei todo ligado, apenas para fazer figura de corpo presente”, lembrou, a propósito de um jogo realizado a 24 de abril de 1966.

Fernando Tomé fez, por isso, parte do período dourado da história do Vitória. “Tive essa felicidade. Realmente pertenci a uma geração de grandes jogadores. Conseguimos juntar grandes equipas a grandes amigos. E isso foi muito importante. Como sabe nessa altura havia a lei de opção [o clube detentor do passe tinha sempre opção e assim a saída do atleta estava condicionada à vontade dos dirigentes] e os jogadores não trocavam de clube com tanta facilidade. Ganhámos o Teresa Herrera, Taças de Portugal, a Copa do Mundo, o Troféu Ibérico, torneios na América, foi realmente uma década de ouro”, recordou este apreciador de raia à pescador, mas honrado padrinho da sardinha assada no Festival das 7 Maravilhas da Gastronomia.

“Digo Vitória sempre, morro pelo Vitória

Tomé com a Copa do Mundo ganha em 1970
Após pendurar as botas, Fernando Tomé voltou à formação vitoriana como treinador, tendo ainda desempenhado outras funções no clube, entre as quais a de uma espécie de embaixador. “Tudo o que esteja relacionado desportivamente comigo, estará também com o Vitória. Foi no Vitória que me iniciei, que comecei a participar em grandes competições internacionais e que me tornei internacional. Digo Vitória sempre, morro pelo Vitória, mas toda a gente sabe a dedicação que tive aos outros dois clubes que representei [Sporting e União de Leiria]”, frisou o ex-futebolista, hoje com 73 anos, que participou num sketch do Vai Tudo Abaixo e na novela Mar Salgado.

“Algumas pessoas viram-me e continuam-me a ver a apanhar as bolas dos juniores, juvenis e iniciados quando iam para fora do campo, algumas viram-me fazer o que era impensável que era ser segurança de jogos do departamento juvenil, e isso quer dizer o seguinte: Não sou mais vitoriano que os milhares que existem e ainda bem, no seio do nosso clube, gostaria é que fossem o dobro ou triplo independentemente das circunstâncias e de como as pessoas veem e entendem o que seja o Vitória como clube, que em 106 anos tem uma história impagável”, acrescentou em agosto de 2016, quando foi apresentado pelo então presidente vitoriano Fernando Oliveira como coordenador da formação.

Dá nome a relvado sintético na Várzea

Também no ano de 2016, aquando do programa Setúbal Cidade Europeia do Desporto, viu ser inaugurado na Várzea um relvado sintético batizado com o seu nome. “Quero que os meus netos se possam orgulhar do que fizeram ao avô em vida. Infelizmente, no nosso país e talvez não só, acontecem muitas homenagens a título póstumo”, referiu na altura.

Já a presidente da Câmara Municipal de Setúbal, Maria das Dores Meira, desfez-se em elogios: “É uma homenagem mais do que justa a este homem sábio e sincero, a este homem que nunca rejeita ajuda a ninguém. Porque o Fernando Tomé é muito mais do que futebol. É daquelas pessoas em que se vê refletida a limpidez do Sado, em que se sente, em cada palavra, a cidade onde se fez homem e futebolista. O Tomé é Setúbal.”

As riscas horizontais e as duas internacionalizações

Tomé ao serviço do Sporting entre 1970 e 1976
Nem só de Vitória se fez a carreira de Fernando Tomé. Ainda enquanto jogador dos sadinos disputou um jogo pela seleção nacional “B” diante da congénere francesa em junho de 1967, dois anos e meio antes de se estrear pela principal equipa das quinas numa partida em Berna, diante da Suíça (1-1), na fase de apuramento para o Mundial de 1970.

Após ter jogado pela primeira vez pelos “AA” portugueses em novembro de 1969, no mês seguinte foi a Wembley defrontar a então campeã mundial Inglaterra, que apresentou em campo vultos como Bobby Moore, Jack Charlton e Bobby Charlton. “A primeira foi para uma eliminatória do Campeonato do Mundo com a Suíça, mas na verdade em Wembley perante 100 mil pessoas, ouvir o Hino de Portugal, foi qualquer coisa fora do comum para um ser humano. Uma só palavra: chorei”, salientou.

Além do Vitória e da seleção nacional, Tomé também defendeu as cores do Sporting (1970 a 1976) e da União de Leiria (1978 a 1981). A transferência para a equipa leonina, por dois mil contos, foi contra a sua vontade, mas deu ao Vitória o dinheiro necessário para instalar iluminação no Bonfim. “Segundo se diz eu só saí para que fosse possível ao Vitória ter dinheiro para a iluminação. A transferência foi dois mil contos, acho que as quatro torres de iluminação e os projetores custaram 1500 contos, portanto ainda ficou algum dinheiro para o orçamento do clube naquela época”, contou ao DN o antigo médio que em Lisboa continuou a vestir de verde e branco… mas às riscas horizontais.

Em Alvalade venceu um campeonato (1973-74) e três Taças de Portugal (1970-71, 1972-73 e 1973-74), mas um dos momentos mais marcantes foi quando foi à Alemanha disputar a segunda-mão das meias-finais da Taça das Taças diante do Magdeburgo, a 24 de abril de 1974. Quando saiu de Portugal, o país vivia em ditadura. Quando chegou, festejava a liberdade. “No regresso, quando vínhamos para a fronteira, o carro que ia à nossa frente, onde ia o falecido presidente do Sporting, o senhor João Rocha, começou a fazer sinal para encostar na autoestrada - a ligação de autocarro foi só para passar de uma Alemanha para a outra, depois apanhámos o avião, em Frankfurt. Parámos e o presidente chega ao autocarro e diz: ‘meus senhores, é só para dizer que tivemos agora a notícia de que ocorreu um golpe de Estado em Portugal’. Foi um choque, era a primeira vez que se ouvia falar de um golpe de Estado. Quando chegámos ao aeroporto de Frankfurt dirigimo-nos ao balcão da TAP e estava fechado. Ficámos ali e lá vieram dois funcionários da companhia, o senhor João Rocha foi falar com eles e soube que os voos estavam cancelados para Lisboa. Disseram-nos o que sabiam: ‘Estamos a ouvir a BBC em que dizem que há milhares de mortos e centenas de milhares de feridos.’ Perante isto, uma das três pessoas que sempre nos acompanhavam nas viagens diz: ‘Eh pá, porra, e eu deixei o meu carro na Baixa.’ Ou seja, não se preocupou com o golpe de Estado, mas com o carro. E nós ficámos ali sem saber mais nada", começou por contar. 


"Viemos de avião de Frankfurt para Madrid, isto no dia 25 de abril. Chegámos a Madrid e fomos de autocarro para Badajoz. Quando lá chegámos a fronteira estava fechada. Quase às quatro da manhã eu e o Zezinho fomos para um hostel, mas às oito já tínhamos de estar na fronteira para ver se nos deixavam passar. É evidente que não deixaram. O senhor João Rocha tomou a iniciativa de ir falar com os polícias e uns vieram buscá-lo, ele ia no meio deles, parecia um prisioneiro. Falaram com o general Spínola por um rádio e passado algum tempo, curto, receberam na fronteira a indicação para nos deixar passar. Está a ver a confusão, estavam centenas de carros para entrar em Portugal. O nosso autocarro estava à frente, abriram a fronteira, deixaram passar quatro ou cinco carros e voltaram a fechar. Nós já não comíamos há uma série de tempo, fomos almoçar à estalagem em Elvas e depois viemos para Lisboa. Fiquei em Setúbal como sempre nos Quatro Caminhos, o autocarro parou, deixou-me e seguiu. Então apareceu um rapaz meu amigo, viu-me, parou o carro e eu disse que ia para a casa da minha sogra onde estava a minha mulher com os meus filhos, aí ele diz que me levava. Quando entrei no carro disse-lhe ‘então pá, há muitos mortos?’ e ele responde: ‘Não pá, qual mortos? Isto é uma festa.’ E eu: ‘Uma festa? Então diziam que havia milhares de mortos e centenas de milhares de feridos.’ ‘É mentira pá, houve um ou dois mortos, gajos da PIDE [polícia política da altura]. Os militares andam na rua com cravos.’ Depois cheguei a casa e comecei a ter a noção do que se tinha passado. Foi uma odisseia que fica registada para a vida”, lembrou.


Na cidade do Lis, para onde se transferiu já na curva descendente da carreira a convite de Félix Mourinho, ajudou os leirienses a subir à I Divisão em 1979 e 1981.

Foi precisamente na União de Leiria que começou a carreira de treinador, tendo orientado ainda Lixa, Famalicão, Penafiel, Oriental, Olivais e Moscavide e, claro, o Vitória, não evitando a descida dos sadinos à II Divisão em 1986. Além do plantel principal, orientou várias equipas das camadas jovens, incluindo os juniores que foram campeões nacionais em 1994-95 e que depois ficaram sem o título.




















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