domingo, 20 de outubro de 2019

Governos ao barulho, demissões e ameaças. O que se seguiu ao racismo do Bulgária-Inglaterra

Grupo de adeptos que hostilizou jogadores negros de Inglaterra
Os incidentes do Bulgária-Inglaterra de segunda-feira atingiram enormes proporções. Insultos racistas dirigidos por adeptos búlgaros a vários jogadores ingleses e as saudações nazis levaram a que o jogo do Grupo A de apuramento para o Euro 2020 fosse interrompido duas vezes pelo árbitro e nesta terça-feira motivou a demissão do presidente da federação daquele país do Leste Europeu, após pressão governamental.


A Borislav Mihaylov, antigo guarda-redes do Belenenses entre 1989 e 1991, que também defendeu as redes dos ingleses do Reading, não restou outra alternativa que não apresentar a demissão, depois de o primeiro-ministro, Boiko Borisov, ter ordenado o cancelamento de "todas as relações entre o governo, incluindo as financeiras, com a federação", até que o líder federativo se demitisse. A saída foi anunciada numa curta nota publicada no site oficial da federação, advertindo que o governo búlgaro não tinha o direito de se "imiscuir no futebol".

O que se passou durante a goleada inglesa por 6-0 não foi um caso isolado no futebol da Bulgária ou até mesmo nos jogos entre as duas seleções. Em 2011, os búlgaros foram multados em cerca de 40 mil euros por insultos racistas aos jogadores Ashley Young, Ashley Cole e Theo Walcott durante um encontro de qualificação para o Euro 2012 em Sófia.

Dois anos depois, a Bulgária foi castigada com um jogo à porta fechada e multada em cerca de 27 mil euros depois de os seus adeptos terem entoado cânticos a imitar um macaco, tendo como alvo o defesa da seleção dinamarquesa Patrick Mtiliga. Já neste ano, o Comité de Controlo, Ética e Disciplina da UEFA sancionou a seleção búlgara com o encerramento de cinco mil lugares do estádio Levski - onde a seleção búlgara realiza os seus jogos - no encontro desta segunda-feira com a Inglaterra e de três mil na partida com a República Checa, a 17 de novembro.

Levski reincidente

O problema não se tem restringido apenas à seleção, mas também aos clubes búlgaros. Em 2014, adeptos do Levski Sófia decidiram fazer uma paródia a um slogan da UEFA, "Say no to Racism" [Diz não ao racismo], e exibiram uma tarja onde se podia ler "Say Yes to Racism".

Antes, a 20 abril de 2013, adeptos do clube de Sófia exibiram uma tarja a desejar feliz aniversário a Hitler e uma outra com uma suástica. E ainda entoaram cânticos racistas, imitaram sons de macacos e atiraram uma banana ao seu próprio avançado, Basile de Carvalho, que tem nacionalidade guineense. Na final da Taça da Bulgária da época passada, um jovem adepto do Levski apareceu com uma suástica pintada no peito ao lado de um outro adepto a fazer uma saudação nazi.


Já neste ano, em agosto, o Comité de Controlo, Ética e Disciplina da UEFA puniu o Levski com o encerramento parcial do estádio devido a comportamentos racistas, num jogo da primeira pré-eliminatória da Liga Europa, obrigando o clube búlgaro a exibir uma tarja com o texto "#EqualGame" e com o logótipo da UEFA no setor encerrado. E ainda aplicou uma multa de 4500 euros. Outro emblema do país, o Lokomotiv Plovdiv, também foi castigado pelo mesmo motivo.

Pavel Klymenko, responsável pela zona da Europa de Leste da FARE [Futebol contra o Racismo na Europa], afirmou recentemente ao britânico Telegraph que o Levski Sófia é "um dos piores clubes" que encontrou em termos de "infiltração neonazi".

Inglaterra já previa abusos racistas

Este longo historial dos últimos anos e os abusos racistas de que os jogadores da seleção inglesa foram alvo na visita a Montenegro, em abril, levou a que, dias antes do encontro de Sófia, diante da Bulgária, a Inglaterra tivesse ameaçado parar o jogo frente à Bulgária caso se verificassem ações de racismo.

Essas ameaças caíram mal no seio da federação búlgara, que criticou Inglaterra. "O público búlgaro não cometeu nenhuma infração recente que mereça ser estereotipada como racista ou hostil. Essas acusações não são apenas injustas, são tentativas contínuas de perturbar a atmosfera antes de um jogo de futebol muito esperado", escreveu o presidente da Federação Búlgara de Futebol numa carta enviada à UEFA e divulgada pela BBC.

O que é certo é que os insultos racistas vieram mesmo a confirmar-se na segunda-feira, ainda que nem todos o reconheçam. O selecionador búlgaro, o antigo médio sportinguista Krasimir Balakov, diz que não se apercebeu de qualquer abuso e que a conversa que o capitão Ivelin Popov teve com os adeptos durante o intervalo se deveu "provavelmente à insatisfação pela forma como a equipa estava a jogar", numa altura em que perdia por 4-0. Balakov foi mais longe e disse que, se houve algum "comportamento inaceitável foi por parte dos adeptos ingleses", que não estiveram em silêncio enquanto o hino búlgaro tocava.

Entretanto, o selecionador búlgaro já se veio retratar nesta terça-feira no Facebook, ao dizer que as suas declarações foram tiradas do contexto e pedindo "sinceras desculpas aos futebolistas ingleses e a todos os que se sentiram ofendidos". O antigo médio do Sporting frisa que condena "incondicionalmente todas as formas de racismo" e que "esta forma de preconceito deve ser enterrada bem fundo".


Porém, o guarda-redes da seleção búlgara, Plamen Iliev, considerou após o jogo que os adeptos da casa se "portaram bem" durante o jogo e acusou os jogadores ingleses de terem "reagido exageradamente".

A mesma opinião é partilhada por alguns jornalistas locais. Depois de o presidente da Federação Inglesa (FA) ter afirmado que aquela foi "uma das noites mais terríveis" que viveu no futebol, um repórter búlgaro considerou essa declaração um "exagero". O mesmo se passou depois de uma resposta do selecionador inglês Gareth Southgate na conferência de imprensa que se seguiu ao jogo. "Não houve situação difícil em qualquer circunstância. Do que estão a falar? É um exagero", exclamou outro jornalista.

Português não conta dos abusos racistas

O DN conversou com Filipe Nascimento, médio português que atua no Levski Sófia desde fevereiro do ano passado, e o jogador contou que esteve no estádio e que não deu conta dos abusos racistas. "Estive no jogo e sinceramente penso que houve um alarido um bocado grande. Quando o jogo parou, eu nem sabia porque tinha parado. Pelo que percebi, tudo se resumiu a um grupo organizado de hooligans malucos e durou pouco tempo", contou o centrocampista de 24 anos. "Durante a semana que antecedeu o jogo, a imprensa inglesa disse que a Bulgária era um país racista e isso esteve sempre na ordem do dia. Creio que até foi isso que motivou aquela reação daquele grupo, que é uma minoria muito pequena", acrescentou o futebolista formado no Benfica.

Filipe Nascimento garante que nunca assistiu a atos racistas na Bulgária e que, no jogo desta segunda-feira, até viu "adeptos búlgaros a aplaudirem os jogadores ingleses no final, porque eles estiveram muito bem".

Ingleses pedem expulsão da Bulgária à UEFA

Cansados de ver este tipo de incidentes serem punidos apenas com multas e encerramento parcial ou total de estádios durante alguns encontros, os jornais ingleses querem tolerância zero e apelaram à expulsão da Bulgária da qualificação do Euro 2020, a penalização máxima prevista nos regulamentos da UEFA.

"Para a UEFA dizemos: expulsem-nos. Para Inglaterra dizemos... RESPEITO. Os heróis colocaram a bola na rede dos racistas SEIS vezes", podia ler-se na capa do suplemento desportivo do tabloide The Sun. Também agressiva foi a capa do Mirror Sport: "Expulse-nos. Inglaterra destrói racistas mas UEFA tem de agir contra a Bulgária."

Já a FA pediu, ainda na segunda-feira, que a UEFA "investigue de forma urgente" os incidentes, uma vez que "não é a primeira vez" que a equipa enfrenta problemas desta natureza.

O primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, também condenou nesta terça-feira os tristes acontecimentos de Sófia. "O racismo ignóbil que vimos e ouvimos na noite de segunda-feira não tem lugar no futebol ou em qualquer outro lugar. Apoio completamente Gareth Southgate [selecionador inglês] e a equipa por estarem acima disso. Precisamos de ver uma ação forte e rápida da UEFA", escreveu na rede social Twitter.


Aleksander Ceferin, presidente da UEFA, também reagiu nesta terça-feira ao dizer que "a ascensão do nacionalismo em todo o continente tem alimentado um comportamento inaceitável". E pediu aos governos nacionais para se juntarem às federações no combate ao racismo. Entretanto, a UEFA acusou a federação búlgara de cânticos racistas e saudações nazis por parte dos adeptos, mas a FA também enfrenta uma acusação de interrupção do hino nacional da Bulgária por parte dos adeptos ingleses.

Em julho, a FIFA aprovou um novo código disciplinar que permite que os árbitros suspendam um jogo de futebol por incidentes racistas, podendo mesmo dá-lo por encerrado e atribuir a derrota à equipa infratora. Além disso, o organismo que rege o futebol mundial estipulou castigos mais pesados para jogadores e outros responsáveis que se envolvam em abusos racistas, duplicando de cinco para dez jogos o período de suspensão.








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