terça-feira, 23 de julho de 2019

Foi colega de curso de Baggio e estagiou com Ancelotti. O português que quer mudar o futebol timorense

Fabiano Flora é selecionador de Timor e treinador do Boavista
A boa fama dos treinadores portugueses já chegou ao outro lado do mundo e em Timor-Leste a federação local confiou a seleção principal a Fabiano Flora desde a semana passada, na expectativa de melhorar o atual 200.º lugar do país no ranking FIFA ou, por outras palavras, o 12.º a contar do fim. O técnico vai conciliar o cargo de selecionador com o de treinador do Boavista de Timor-Leste.


Apesar de ser um desconhecido para o público português, o jovem treinador de 34 anos já trabalhou em clubes como a Lazio e a Juventus, tendo ainda estagiado no Benfica e no Paris Saint-Germain. Depois de uma passagem por Portugal, por Olhanense e Académica, rumou ao continente asiático pela porta de Myanmar, antes de há três meses receber o convite do Boavista de Timor-Leste e posteriormente o da federação timorense.

"Tive uma reunião com um jogador brasileiro que estava comigo em Myanmar e que tinha sido campeão pelo Boavista. E depois falei com o sobrinho do Xanana Gusmão, o Carlos Gusmão, que é dirigente do clube, e chegámos a acordo", começou por contar ao DN o técnico que, ao leme dos axadrezados, tem o objetivo de levar a equipa à Taça AFC, equivalente à Liga Europa naquele continente.

"As coisas estão a correr bem, estamos a três pontos do primeiro lugar e tudo é possível. Agora tive esta proposta da seleção, que por enquanto consigo conciliar, porque faltam três meses para terminar o campeonato. Quando terminar, irei dedicar grande parte do meu tempo à seleção. Pedi ao presidente da Federação para que os trabalhos começassem já, para preparar os SEA Games [Jogos do Sudeste Asiático], que se vão realizar nas Filipinas em novembro", prosseguiu Fabiano Flora, que pretende melhorar a imagem do futebol de Timor-Leste.

"Perder por cinco ou sete tem de acabar de vez"

"O objetivo principal é melhorarmos a imagem dada interiormente. Perder por cinco ou sete tem de acabar de vez. Timor-Leste tem de deixar de ser aquela seleção para a qual todos olham como fraca. Temos de mudar um bocadinho a mentalidade", vincou o português, natural de Penedono, no distrito de Viseu. "Acompanhei de perto a qualificação da seleção para o Mundial e a imagem dada não foi a que pertence a este país. A minha ideia é mudar esta imagem, dar uma imagem positiva, uma alma nova. Se estivermos todos unidos, será mais fácil o desenvolvimento do futebol", acrescentou, em alusão às goleadas sofridas ante a Malásia (1-5 e 1-7) no apuramento para o Mundial 2022.

Sem tempo a perder, Fabiano Flora concilia os trabalhos diários no Boavista, presidido pelo Nobel da Paz José Ramos-Horta, com dois treinos semanais da seleção. "Em três ou quatro meses penso que vamos conseguir dar uma melhor organização à equipa e transmitir-lhe alguns princípios que para mim são importantes. Ainda não é um trabalho muito acentuado, mas dá para criar algumas rotinas que serão úteis no futuro", justificou, antes de descrever a realidade do futebol em Timor-Leste.

"O futebol em Timor está em desenvolvimento, juntamente com o país. As infraestruturas não são as melhores: há um complexo desportivo da Federação, que tem um sintético, e um estádio com campo relvado em construção. A nível de jogadores há alguns valores interessantes, entre eles um miúdo que está no Málaga, Kornelis Portela, e outro que está no campeonato da Tailândia, o João Pedro. É pena que os clubes portugueses não estejam atentos, porque há jogadores com qualidade e com margem de progressão mas que precisam de ser limados não só individualmente mas também a nível tático", explicitou, lamentando não haver timorenses a jogar em Portugal.

Sem timorenses a jogar em Portugal ou noutros países mais desenvolvidos a nível de futebol, desde 2012 que a Federação de Futebol de Timor-Leste (FFTL) tem recorrido à naturalização de jogadores brasileiros. Porém, a entidade foi acusada pela Confederação Asiática de Futebol (CAF) de usar documentos falsos para regularizar a situação desses futebolistas e consequentemente impedida de participar na qualificação para a Taça Asiática 2023, uma sanção ampliada a nível mundial pela FIFA.

Pastel de nata e café como em Portugal

"Só posso contar com sangue timorense", assume Fabiano Flora, que diz que a "agressividade individual é a base do futebol de Timor". "Tecnicamente também não são maus, mas taticamente tem de se trabalhar muito defensiva e ofensivamente", aditou o treinador português, que após três meses se diz plenamente adaptado à vida em Timor-Leste.

"Timor é muito parecido com Portugal. Tem restaurantes, supermercados e hábitos portugueses, há aqui muitos professores e cruzo-me diariamente com portugueses. Até o meu pequeno-almoço é um pastel de nata e um café", afirmou o técnico, que dá conta da grande paixão dos timorenses "pelo futebol e sobretudo por Portugal".

"Adoram a seleção portuguesa, o Benfica, o FC Porto e o Sporting, sobretudo o Benfica e o FC Porto, e vivem intensamente cada jogo que passa. Vê-se pessoas com camisolas do Cristiano Ronaldo e bandeiras de Portugal. Há uma paixão por Portugal. Relativamente aos jogos locais, acompanham de perto e o estádio está sempre cheio. São muito efusivos e têm sangue à flor da pele, como os latinos", frisou.

Colega de curso de Roberto Baggio

Fabiano Flora jogou futebol nos juniores do Académico de Viseu e nos seniores do Lusitano de Vildemoinhos. Entretanto, tirou o curso superior na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e estudou em Itália no âmbito do programa Erasmus. Em solo transalpino fez quase toda a sua formação. "Fiz o segundo e o terceiro nível na Federação Italiana, tive a possibilidade de estagiar na Lazio e depois fiquei lá a trabalhar durante cinco anos, e também passei pela Juventus", recordou, puxando a cassete atrás.

Num dos cursos que tirou, teve como colega Roberto Baggio, uma das grandes figuras de sempre do futebol italiano. "Um dia ele saiu da aula, disse que ia fazer-nos uma surpresa e passados três minutos trouxe-nos o Pep Guardiola, naquela fase em que ele tinha acabado de vencer tudo pelo Barcelona. Foi muito bom ouvi-lo, aprendi bastante", lembrou o português, que também estagiou durante uma semana com Carlo Ancelotti, no Paris Saint-Germain, fez um estágio técnico nas camadas jovens do Benfica e conviveu com jogadores históricos da Lazio como Sebastiano Siviglia, Tommaso Rocchi ou Simone Inzaghi, que na altura eram treinadores na formação do emblema romano.

Entre os jogadores que lhe passaram pelas mãos e que agora jogam ao mais alto nível, Fabiano Flora recorda Danilo Cataldi, que chegou a dispensar da Lazio e que agora faz parte da equipa principal, mas também o benfiquista Jota. "Já na altura se falava que ia dar jogador", lembra o técnico luso.

"Morcegos fritos? Só provei a sopa de ossos"

Acabou por ser pela mão de um treinador italiano, Giuseppe Galderisi, que Fabiano Flora voltou a Portugal, para trabalhar no Olhanense, em 2013-2014. "As coisas não correram muito bem e fui para a Académica de Coimbra, onde criei o departamento de scouting e acompanhei de perto a equipa principal, com Paulo Sérgio e José Viterbo", acrescentou.

A passagem pelo país de origem foi curta. Em 2015 recebeu um convite de um treinador sueco que conhecia, Stefan Hansson, para rumar a Myanmar, antiga Birmânia, no sul da Ásia. "Ele precisava de um adjunto que tivesse algumas noções do trabalho físico. Depois ele foi-se embora e eu continuei na equipa. No ano a seguir, esse clube onde eu estava [Zeyar Shwe Myay] extinguiu-se devido a um conflito entre o presidente do clube e o governo, e passei para o Southern Myanmar, tal como grande parte dos jogadores. Continuámos o trabalho desenvolvido e fizemos história, porque batemos o recorde de pontos do clube no campeonato. Foi um trabalho excelente com uma equipa modesta", destacou o técnico português, que sentiu bastantes dificuldades de adaptação àquele país asiático.

"A alimentação em Myanmar é completamente diferente da europeia, muito à base de picante e de arroz com galinha. Depois há os morcegos fritos, os saltaricos... Nunca comi nada disso, só provei a sopa de ossos. Tinha de fazer a comida em casa e o problema era quando íamos para estágio e tínhamos de nos adaptar", confessou o beirão, que também passou mal com o clima daquela região do globo.

"É muito complicado, com muito calor e humidade. Tem de se trabalhar muito cedo. Em Timor temos de treinar às 07.30, em Myanmar era às 06.30 ou às 07.00. Depois o calor não se suporta. Lembro-me de jogar em Myanmar com 47º C ou 48º C e de haver várias paragens durante o jogo", recordou, bem-disposto.

Viagens longas e atribuladas

Outro handicap em Myanmar foram as longas e atribuladas viagens para os jogos. "No meu primeiro ano em Myanmar, para jogar em casa fazíamos 11 horas de autocarro. Imagine quando tinha jogo a meio da semana para a taça. Eram muitas horas de viagem por semana, com estradas e autocarros que não são como os nossos. Foi muito difícil para mim", salientou, antes de contar alguma das peripécias.

"Numa dessas viagens, fomos fazer um jogo perto do mar, mas o rio tinha subido e a estrada ficou completamente alagada, mas começámos a andar e não conseguíamos voltar para trás, já tínhamos a água a meio do autocarro. Era um perigo. Só se via água e cobras a passar, não se via estrada. Houve outra viagem que fizemos de barco, numa daquelas canoas tradicionais, e depois o barco ficou sem gasolina e ficámos à espera que chegasse outro. Houve jogadores que não sabiam nadar e que estavam um bocadinho atrapalhados, mas levámos aquilo na brincadeira", acrescentou, com alguma nostalgia.

No entanto, apesar dos ganhos a nível profissional e monetário, pesa o facto de a família estar no outro lado do planeta. "Custa-me imenso não ver crescer a minha filha nem ver envelhecer os meus pais. É sempre complicado. Espero que no futuro estejamos todos juntos novamente. Por vezes as pessoas não têm noção, pensam que andamos a passear pelo fim do mundo, mas também sofremos muito", rematou.













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